Gilmar Pereira Lima
Cândido Sales / BA

 

Farinha pouca, meu pirão primeiro

 

           

Cândido Sales, Bahia, quarta sexta-feira de março. O ano não sei mais. Asas do tempo levaram consigo. Mas penso naquele dia sempre que se aproxima a quaresma. Seria mais um dia como tantos em que o cansado poeta cumpre com a velha rotina diária de, logo cedo, ir ao mercado comprar o pão e o leite — inclusive, o tradicional peixe salgado, aquele de sabor parecido com o de bacalhau.
Pelas ruas, os mesmos pardais despertando a manhã; o cachorro do vizinho latindo, e o carteiro ensaiando uma fuga estratégica ou tentando se proteger da fera — isto é, se não o tivessem demitido do seu ofício dias antes, obrigando a população a formar imensas e morosas filas no posto dos correios para pegar suas missivas.Em frente à Igreja Matriz, os caminhões aqueciam seus motores. Uns poucos partiam para o trabalho. Mais adiante, um gari esforçava-se para não perder o horário novamente. Na esquina da Agência Bancária, o senhor que vende café e cachaça expõe suas mercadorias. Ao seu lado, duas senhoras esperando o momento certo para oferecer cosméticos e cobertores aos aposentados, enquanto um outro senhor aproxima-se para posicionar seu carrinho de vender água de coco. Tinha tudo para ser apenas mais um dia... Se não fosse o olhar inquieto do poeta que, logo mais, chegaria em sua casa e tomaria o café com leite acompanhado e pão amanteigado; depois, sentado no banco da pracinha, daria continuidade à sua leitura do “Sobrados e Mucambos – a continuação de Casa-Grande & Senzala” numa tentativa de entender certos costumes brasileiros através da visão de Gilberto Freyre. Mas, ao fazer o percurso de volta, observa dois sujeitos:
— Pô! Você comeu tudo!
— Oxente! Mas era só um punhado de feijão com arroz. Num deu nem para tapar o buraco do dente.
— Só que eu ainda 'tava lá na ponte tentando conseguir mais algum.
— Calma! Agente pede mais.
— Agora é sua vez... E a farinha?
— Acabou.
— Cara, ‘tô numa fome de ingulir uma vaca inteira!
— Tome aqui. É o último pedaço de pão.
Foi como se tivesse dado um tapa na face do velho poeta para refletir sobre aquela cena. Ou, talvez, sobre o seu comportamento diário perante o semelhante; e, ainda, sobre nosso comportamento político, costumes, religiosidade ou a miséria humana. Pois, afinal de contas, era quaresma, e ele seguia, rigorosamente, a tradição herdada pela sua família de comer o sagrado peixe nas sextas-feiras até o dia da Paixão de Cristo. No entanto, diante dos seus olhos, duas pessoas não tinham o que comer.
De imediato, vieram-lhe lembranças das histórias de sua avó sobre a origem da culinária brasileira. Entre outras, as que mais marcavam se referiam sobre os primórdios costumes alimentícios dos nossos ancestrais. Uma, interessante, é sobre a morte de D. Pedro Fernandes Sardinha, jesuíta devorado pelos índios Caetés, onde ela descrevia técnicas do moqueado desses antepassados. E, sobre os primeiros contatos com os índios, relatava ainda a repugnância dos portugueses com relação ao cauim — bebida inebriante e deliciosa produzida pelos povos daqui, mastigando vários frutos, principalmente o caju, e cuspindo num vasilhame para ocorrer o processo natural de fermentação. Alguns lusitanos até vomitavam. Esquecendo que, eles próprios, para produzirem seu requintado vinho, utilizavam-se dos pés para esmagar as uvas.
Vendo a discussão dos dois companheiros de rua, recordou ainda do adágio popular “farinha pouca, meu pirão primeiro”. “A farinha de mandioca era um dos alimentos que os bandeirantes costumavam levar durante suas viagens pelo interior do Brasil. Quando o estoque de comida estava acabando, o prato principal era peixe com pirão. Nesse momento, o chefe da expedição usava a força do cargo.” Daí o surgimento do ditado presente até os dias de hoje. No caso dos dois, faltavam-lhes a farinha e o peixe.
Diante de tal situação,  Pedro Poeta parou e pensou: “aquele que não sente no estômago a ausência do alimento prefere guardar na consciência o dito ‘farinha pouca, meu pirão primeiro’.” Pronto, a indignação estava diante de seus olhos novamente. Resmungou consigo:
— Assim, pensam aqueles que dormem sobre a miséria deste país e fingem sentir a fome de quem não teve ou não tem a oportunidade de saborear dos privilégios públicos, ou melhor, seus direitos mínimos de sobrevivência. Enquanto o político nacional — em seu status de legislador da cidadania — prefere promover altos salários para ele próprio e seus companheiros, esquecendo-se da maior parte da fatia da população brasileira. Então, nessa circunstância, ficamos como o peixe do poeta para cumprir a tradição, o feijão com arroz dos dois cidadãos que não tem onde morar nem o que comer e o canibalesco prato dos Caetés. Estamos revivendo e convivendo num estado de apenas “farinha pouca, meu pirão primeiro”.
Desse dia, então, nenhum outro teve mais a mesmice daqueles dias de março, onde, ao cumprir com sua rotina, o poeta via os mesmos pardais e o carteiro defendendo-se do cachorro do vizinho, enquanto dois cidadãos disputavam um punhado de feijão com farinha.

 

 
 
Poema publicado no livro "7 Pecados Capitais"- Edição Especial - Abril de 2017