Luzineti Aparecida Nunes Espinha
Caraguatatuba / SP

 

 

O buraco

 

           

          O buraco era um velho conhecido. Na verdade, ele sempre existiu, antes mesmo do meu nascimento. Segundo, mamãe, ela o conheceu dois meses antes do casamento, quando compraram a casa que seria o nosso lar.
          Ao descobrirem-no, eles discutiram as possibilidades de adiar a cerimônia, procurar outra casa, contratar um engenheiro... Para o papai, o buraco era um problema sério, mas mamãe sempre foi muito teimosa: - Imagine não fechar o negócio por um único defeito. Um buraco pequeno, redondo, no centro da sala. Isso é perfeitamente contornável, daremos um jeito. Sem problemas. - Ela achava que a casa era perfeita, bem localizada, preço excelente, o tamanho ideal para uma família que estava se formando. Mas papai não estava satisfeito. Tentou convencê-la, até no dia do casamento, da insanidade pela aquisição: - Você o está menosprezando. - Advertiu. Tudo em vão, um dia após o enlace, ele sabia que embaixo da mesinha do sofá, sob o tapete amarelo havia um buraco inseparável de suas vidas.
          Mamãe era cuidadosa, discreta, otimista, ninguém percebia que a sua sala tinha um defeito, que a sua casa não era tão perfeita assim. Nem os mais íntimos imaginavam que o chão ela limpava, que o tapete que ela aspirava, que os móveis que ela polia eram observados por um estranho que morava no meio da sala.
          Quando eu comecei a andar, mamãe falava que a sala era um lugar perigoso. O restante da casa podia ser explorado, mas a sala... Durante a limpeza, ela retirava a mesa, o tapete, e  me mostrava o buraco. Explicava que se mantivéssemos cuidado, nada nos aconteceria. Papai duvidava. 
          Sete horas da noite, a casa descansava dos seus zelos. Passava a tarde dedicando-se a tirar o pó, arrumando as gavetas, pendurando as cortinas recém-lavadas. Papai lia na sua cadeira preferida. Mamãe bordava no sofá grande, no chão, a seus pés, o cestinho de linha, e eu emburrada ora num canto, ora em outro, impedida de circular à vontade. E nessa rotina, certa noite, mais rápido do que um raio, e num silêncio agônico, vimos o tapete desaparecer na mancha negra desenhada no meio da sala. Papai ficou horrorizado. Não imaginava que o buraco evoluíra para tal dimensão, mas mãe o acalmava: - Assim que amanhecer, eu vejo isso. Fique sossegado.
           Na manhã seguinte a sala ganhou um novo tapete, maior, cor de chumbo, e uma nova mesa, mais baixa e maior que o buraco. À noite, estávamos de novo na sala. Papai com o jornal e mamãe no bordado. Bordava pássaros, vasos clássicos e flores, muitas flores que se multiplicavam entre o jardim e o bastidor perdido nos novelos espalhados.
          Minha irmã não conheceu a sala. Quando ela nasceu o buraco reinava absoluto no espaço. Mamãe trancara as duas portas, a da frente e a interna que dava acesso ao corredor que levava aos quartos. As visitas passaram a ser recebidas na cozinha. - Entra aqui no fundo, vem, é mais íntimo, aconchegante. A sala é muito formal. - Mamãe justificava, mas à noite eu a via andar pelo corredor preocupada com o desconhecido trancado na sala.
           A casa diminuíra, tínhamos, agora, a cozinha, o corredor e os dois quartos que mamãe mantinha impecáveis. Ninguém percebeu nenhuma mudança até o sinistro, certa madrugada: a parede, a porta e parte do corredor desapareceram.  Da cozinha para os quartos, o espaço se estreitara. Os cuidados foram redobrados e as visitas recepcionadas no portão. Meu pai se tornou íntimo do aborrecimento e minha mãe, do medo.
         Apesar dos contratempos, íamos convivendo com o estrangeiro, não mais escondido ou trancado, mas solto pela casa, mais precisamente, no corredor, no limiar dos quartos. Mamãe empurrou as camas para as paredes próximas às janelas. De manhã ela se levantava, antes de meu pai, passava se equilibrando no minúsculo espaço, chegava à cozinha, esquentava a água para ele fazer a barba. Punha a chaleira ferver para o café e retornava ao quarto. Depois que ele saía, ela era toda nossa.
          A nova rotina, um dia, foi quebrada. Mamãe se levantou, equilibrou-se na borda do buraco, e enquanto esperava que a água esquentasse, ele devorou o restante do corredor e as paredes internas da casa. Assim, da cozinha aos quartos, agora, só pelas venezianas. Passávamos o dia do lado de fora e, para dormir, entrávamos pelas janelas.
          O buraco passou, do centro da sala, para o da casa. E da cozinha se avistava a casa toda ou o que sobrou dela. Mamãe era metódica e procurou adaptar seus hábitos à nova rotina: acordava cedo, levantava-se antes do meu pai, saía pela janela, passava pelo meu quarto, espiava-nos, eu e minha irmã, certificava-se de que estávamos lá e ia até o fundo esquentar a água para meu pai fazer a barba. Enquanto esquentava, ela duelava silenciosamente com o buraco, até o dia em que ela o viu devorar a cama com o meu pai, pra ser mais precisa, ela viu mesmo, só a mão dele tentando se agarrar ao vazio.  Como se resolvesse, ela gritou muito.
           Mamãe vivia angustiada, depressiva, mas agarrada a nós. Passou, então, a dormir no nosso quarto, ou no que sobrou dele. Dormia na cama comigo, e minha irmã no berço. Continuou levantando muito cedo, de forma que, quando acordávamos, o leite e o café já estavam prontos, a única refeição feita na cozinha. O resto do dia era passado na parte externa. À noite, entrávamos pela janela, ela acomodava minha irmã no berço, depois dormíamos abraçadas.
          Apesar da tenra idade eu não tinha mais ilusões. Conhecia seu poder. Cresci com ele ameaçando, espalhado, espaçoso, guloso, atrevido, íntimo... Passei, então, a vigiá-lo. Certa noite, eu vi a mancha negra alcançar o fogão que estava lá no cantinho. O terror me paralisou, não mexi um músculo do corpo, nem as pálpebras eu consegui mover e fiquei nesse estado de torpor até que amanheceu e vi o berço de minha irmã desaparecer. Saltei por cima do corpo de minha mãe e subi no parapeito da janela que já estava no mesmo nível do jardim.

 

 

 
 
Poema publicado no livro "7 Pecados Capitais"- Edição Especial - Abril de 2017