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Fernando de Castro Dutra
Brasília / DF

 

O suicida

No imenso saguão o movimento não era o dos mais intensos; para dizer a verdade aquele dia estava até muito tranquilo. Algumas pessoas no vaivém de suas vidas demonstravam a mesmice de uma rotina marcada pelo tempo. Os homens, todos de terno e gravata, a maioria de chapéu, que combinava ou contrastava com a indumentária; as mulheres demonstravam sua beleza e elegância, com certa simplicidade, trajando suas saias longas ou usando a nova moda New Look, cujo charme – não que houvesse necessidade – era complementado por chapéus, lenços e luvas.
Um homem, de estatura mediana, dentre os que ali estavam, chamava a atenção. De paletó batido e barba por fazer, trazia na face cansada uma cicatriz; o olhar, penetrante. Imóvel, aguardava um dos elevadores. Quando a porta se abriu, dois rapazes e uma moça entraram; o mais alto, apressado e segurando o elevador, dirigiu-se ao homem:
– Ei! Vai subir? Não tenho o dia todo.
Mas ele continuou imóvel e com o olhar distante. Impaciente, o rapaz liberou o elevador, deixando escapar da boca um sussurrado “idiota”, antes que a porta se fechasse.
Após alguns minutos, a porta se abriu novamente; não havia ninguém além dele. Desviou o olhar para um crucifixo na parede, ao mesmo tempo em que entrava no elevador, acionando o octogésimo sexto andar. Para ele, os minutos que se seguiram pareceram eternos, mas havia, enfim, alcançado seu destino.
A vista do observatório era deslumbrante; muitos do que o visitavam pela primeira vez ficavam maravilhados e sem palavras. O som do sopro do vento, juntamente com a visão que de lá havia, trazia uma sensação de poder, como se o contemplador fosse um regente de uma orquestra sinfônica ouvida e sentida através do olhar.
Mas nenhum deslumbre parecia ser notado por aquele homem que nada parecia enxergar. Ele se aproximou do parapeito e, com a determinação de quem sabia exatamente o que fazer, escalou, fechou os olhos e, quando estava prestes a se lançar ao vento, ouviu uma voz suave e ao mesmo tempo trêmula:
– O que está fazendo? Não adianta tentar, você não vai me impedir; se você se aproximar mais um pouco, eu salto, juro!
Ele arregalou os olhos, olhando para o lado, ainda tentando se equilibrar após ter sido surpreendido por aquela voz. Uma mulher havia chegado primeiro. Com seus vinte e cinco anos, cabelos louros até os ombros, usava saia longa como algumas mulheres vistas no saguão, blusa branca, sapatos delicados nos pés, luvas nas mãos e lágrimas na face escorridas de seus lindos olhos azuis.
– Não! Não faça isso, por favor – disse ele, aproximando-se um pouco mais.
– Já não me resta mais nada; a vida me levou tudo.
– Mas... Mas, seja como for, ainda resta alguma esperança – não soube como aquelas palavras haviam saído de sua boca, pois nem ele mesmo acreditava em coisa alguma.
– Esperança... Eu a tinha quando meu noivo foi para a guerra. Nosso amor era lindo e puro, havíamos feito planos para nos casarmos assim que ele voltasse. Assim que partiu, descobri que estava grávida.
– E o que houve?
– Fiquei muito feliz, porque nosso filho seria mais um motivo para que ele retornasse logo e a salvo.
– Mas não foi isso que aconteceu, não é mesmo?
– Não... – Fechou os olhos por um instante. – Dois anos depois do seu nascimento, meu amado filho faleceu, vítima de uma doença até então desconhecida pelos médicos. Depois, eu não tive mais coragem para lhe escrever novamente. Mas isso não demorou muito, pois três meses depois eu recebi uma carta do exército, informando que meu noivo havia sido morto no campo de batalha, como herói de guerra.
– Eu... Eu sinto muito...
– Mas ainda não acabou, mesmo com essas tragédias, eu ainda acreditava na esperança da qual você falou, confiava em Deus. Ainda encontrava forças Nele para continuar viva, ao lado de meu pai. Porém, com a guerra e a recessão, meu pai não suportou a perda de seus bens e tirou a própria vida com um tiro na cabeça...
– Não sei o que dizer...
– Ainda assim, lutei por mais dois anos, tentando reaver a propriedade que era de meu pai, para trazer um resquício de dignidade a sua memória, mas tudo em vão... E aqui estou, sem mais nada de esperança nem força alguma para continuar, pronta para partir e, enfim, reencontrar meu André e nada do que diga poderá...
– Espere! O que disse? André... – falou o homem, sentando-se no parapeito e deixando que lágrimas se derramassem. Então, a mulher se aproximou, sentando ao seu lado.
– Por que chora? André... Você o conheceu?
– Acha que ainda tem tempo para ouvir uma história irônica e estranha, antes de saltar?
A mulher esboçou um breve sorriso, assentindo com a cabeça. O homem continuou:
– Eu não estou aqui para impedi-la – ela fez um ar de interrogação. – Isso mesmo, eu vim aqui hoje disposto a me jogar daqui de cima, a por um fim em minha própria vida.
– Mas... Você...
– Não! – interrompeu. – Eu não havia nem lhe visto, se quer saber. Estava tão fechado em meu mundo e na vontade de deixá-lo que não tinha dúvidas... E você, então, dirigiu-me a palavra... Salvou minha vida, sem perceber. Eu havia perdido minha fé em Deus e, enquanto aguardava o elevador, fiz-Lhe uma última prece, dizendo-Lhe que se quisesse que eu continuasse neste mundo, que Ele me desse uma razão para isso, que eu pudesse vê-la claramente. E quando subi aqui, deparei-me com você, prestes a se jogar. Eu pude ver, então, qual era a razão. Ao perceber seu sofrimento e seu desespero, esqueci-me da minha própria vida, a qual já não mais desejo tirá-la. Quando me falou de seu noivo, André, tive certeza... A guerra me tirou bons amigos, André... Era um deles.
– Você o conhecia bem? – Perguntou, surpresa com a revelação.
– Bem... Vamos dizer que éramos inseparáveis; eu o admirava muito pela maneira que ele vivia a guerra, sempre de bom humor, não passava um dia naquele inferno em que não falava de sua noiva e de seu filho. Era o que o mantinha vivo e sempre alerta na hora do combate.
– Pedro... Você é o Pedro? – Perguntou ela, em meio a lágrimas.
– Sim... Sara... – Respondeu, emocionado.
– Ele sempre me falava de você, quando me escrevia. Dizia que você era o soldado mais louco e bobalhão que conhecera e o amigo mais querido também – as lágrimas de ambos foram interrompidas por sorrisos.
– Quando você parou de responder as cartas, André nada me disse, mas logo percebi que havia algo errado, pois seu semblante assumira um ar de preocupação. No dia em que morreu, havíamos deixado o acampamento para uma verificação de rotina; tudo estava tranquilo, mais do que de costume, mas por volta do meio dia, nosso pelotão foi surpreendido por uma emboscada alemã. Os sons de pássaros e outros animais que antes ouvíamos, foram violentamente abafados por estrondos de explosões e tiros saídos de todas as direções. André me empurrou para o chão e, por instantes, permanecemos imóveis, porque não sabíamos para onde apontar nossas armas. Eram tantos projéteis passando sobre nossas cabeças que se levantássemos um pouco sequer, morreríamos instantaneamente. E quando o intenso tiroteio acabou, restaram apenas poucos de nós, mas eu estava feliz por haver sobrevivido; levantei-me e fui em direção a André, dizendo: “estamos vivos, amigo, estamos vivos!”, mas quando percebi, ele permanecia imóvel, olhando-me fixamente. Então, amparei sua cabeça em meus braços, enquanto olhava, assustado, o sangue escorrendo de seu peito... André havia se ferido enquanto me tirava da linha de tiro; aquela bala era para mim. Ele apertou forte minhas mãos, depois me deu uma fotografia manchada de sangue, pedindo que eu a entregasse a você. Naquele momento, fiz uma promessa, dizendo a ele que enquanto eu vivesse, onde quer que eu fosse, carregaria comigo aquela fotografia, até te encontrar. Depois que retornei, procurei-a em todos os lugares que André me deu como referência para localizá-la, mas cheguei tarde. Você já tinha partido da propriedade de seu pai, eu nunca mais consegui qualquer informação a seu respeito, até hoje.
Sara, não se contendo de emoção, abraçou-o e agradeceu por ele estar junto dela naquele momento. Pedro levou uma das mãos ao bolso do paletó e tirou a fotografia, ainda borrada de sangue.
– Deus... Não acredito, foi a última fotografia que tiramos juntos no parque. Ele insistiu muito para tirarmos, pois queria uma lembrança para levar consigo – lamentou, levando delicadamente os lábios, molhados pelas lágrimas, à imagem de André, dando-lhe um carinhoso beijo. Depois, virou o verso da fotografia e percebeu que nele havia uma mensagem: “Querida Sara, haja o que houver, nunca desista de sua vida. Com amor, André”.
Sara olhou novamente para Pedro, com os olhos brilhando. Naquele momento, a chama de sua vida reacendeu. Ele desceu do parapeito e, estendendo-lhe a mão, disse:
– Não desista, Sara... Por favor, deixe que eu retribua a vida tirada de André, salvando a sua.
Ela desceu, segurando na mão que lhe oferecia amparo e, em seguida, recostou sua cabeça no peito de Pedro que, acariciando-a, contemplava o céu, enquanto uma lágrima lhe brotava dos olhos e vagarosamente escorria por sua face...

 

   
Publicado no livro "Os mais belos Contos de Amor" - Edição Especial - Outubro de 2014