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Alice de Oliveira Hesketh
São Paulo / SP

 

Rosas para você

Do céu de chumbo pinga o anúncio. Logo mais, as gotas pesadas começam a se suceder em ritmo frenético antes de ruidosamente se fundirem e tecerem uma cortina de água empalidecendo o cinza até torná-lo melancólico. Vestida dessa umidade gélida, ela mergulhava os pés nas poças que pareciam apontar a direção do metrô. Os sapatos a cada passo apressado mais embebidos do caminho. Não conseguiria se livrar da memória fria de sua jornada. Deixaria manchas liquidas por onde passasse.
No pé da escada, pronta para descer à plataforma, afastou os fios molhados que adormeceram nas curvas de seu rosto, sacudiu as botas úmidas fazendo voar singelas gotas de cristal e se agarrou ao grosso casaco que a protegia da fúria da tarde. Num suspiro, desceu os degraus.
A estação fria e suja abrigava um ar quente. Comprou o bilhete e pôs-se a esperar o trem. Esperou muito, mas a máquina não chegava de modo algum. É possível tamanha demora? Bufou, impaciente, com o olhar vago no chão. Estalou o pescoço, levantou os olhos e pela primeira vez os notou. Pessoas. Não muitas, mas algumas, provavelmente esperando o mesmo trem. Um homem do outro lado da estação , os olhos presos a um celular que pairava acima de sua cabeça, andava com calma em busca de sinal. Um velho, que lhe vinha a parecer um mendigo, sentado murmurava algo consigo mesmo. Havia uma mulher e um menino. Nenhum deles muito velhos, embora a moça tivesse uns significativos anos a mais em relação ao garoto. Ela tinha um olhar vazio. Olhava para o nada e em canto algum. Um olhar desolado. O menino a observava com cautela, sobrancelhas flexionadas, mas com a expressão calma. Então, ele tomou-lhe a mão direita e, num gesto simples, subiu-a aos lábios. Pressionando a mão pálida da mulher com força em sua boca, e esta apenas lhe devolveu um fraco sorriso triste. Como ele conhecia esse gesto? Era ainda tão jovem... Ela só vira aquilo poucas vezes na vida, e há muito tempo.
Numa tarde nublada, no meio de abril, ela voltava para casa depois da escola. Caminhava alegre, com um sorriso e nele uma janela entre os dentes. Por mais cansada que estivesse da caminhada, do peso nas costas, da tarde deprimente, ela não mudava a expressão. Tirou os fios preguiçosos da testa e se agarrou nas alças da mochila, enquanto entrava em sua casa aos pulos. Abriu a porta, jogou a bolsa perto da escada e com um salto aconchegou-se no sofá. Parou um instante. Passou de leve a língua na superfície macia que agora se encontrava em sua boca. Deu uma risadinha.
Um cheiro bom saído da cozinha invadia a sala, seguido de diversos barulhos. Uma moça bonita, com cabelos curtos cacheados e olhos claros apareceu à porta. Dirigiu-lhe um sorriso com o canto da boca. Ouvia-se a chuva que começara a cair do lado de fora. Um homem entrou na casa, tremendo e molhado, com uma rosa na mão. A menina levantou-se do sofá para ver a cena que sempre a encantava, com os olhos arregalados vidrados no casal. A mulher, ao ver o rapaz, deu um passo a frente, o sorriso hesitante ainda estampado no rosto. O moço sorria abertamente, o olhar preso ao dela. Ele tomou-lhe a mão e, num gesto simples, levou-a aos lábios, pressionando-a com força, mas delicadamente contra a boca. Depois disso, acariciou a bochecha da moça com as pétalas da flor, pousando levemente nas mãos dela a prova de seu amor.
O tempo passou rápido. A cena repetiu-se mais algumas vezes. A última, eterna. Uma cama de madeira sobre a mesa. O homem debruçado nela a olhar uma mulher belíssima que se encontrava na paz de um sono profundo. Ele sorria de leve, como sempre fazia. Um rastro brilhante descia de seus olhos, caminhando por sua face. A menina os observava. Ele passou os dedos nos cabelos da moça, pegou-lhe a mão e realizou o ritual. Acariciou seu rosto com uma rosa branca e a pousou entre as mãos da mulher, beijando-lhe a testa. Hesitante, se afastou para sempre. A menina, ainda parada observando o caixão escuro, passou de leve a língua entre os dentes. A superfície delicada e macia que uma vez se encontrara em sua boca havia sido substituída por algo duro, seco e áspero.
O barulho do trem fez tremer a estação, trazendo-a de volta. Todos embarcaram. O menino e a moça no vagão ao lado do da mulher. Ela dirigiu-lhes um último olhar. Quando chegou ao seu destino, não os viu sair. Aos pés da escada, agarrou-se no casaco, muito embora a estação estivesse quente. Saiu do buraco com o mesmo rastro brilhante do homem.

 

   
Publicado no livro "Os mais belos Contos de Amor" - Edição Especial - Outubro de 2014