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Henrique Vianna
Caruaru / PE

 

Fluxo

Estou no balcão de um bar bebendo uma dose de uísque com gelo. É sexta-feira e o bar estar cheio, não gosto desse lugar e dessas pessoas. Tudo muito sofisticado, pessoas inteligentes demais, bonitas de mais, brancas de mais para sentir algo de verdade. Os olhos delas brilham cínicos na penumbra do bar como os de víboras, é sexta-feira à noite e eu queria estar em casa. Bebo a dose de uísque devagar, não gosto do seu sabor, até minha bebida não parece ser minha aqui, ela me parece doce de mais, me parece falsa, plástica.

Todos me olhavam, homens e mulheres. Os homens me lançavam olhares com certa raiva, sabem que eu não sou dessas bandas e nunca serei, acham que eu posso ser uma ameaça em seu território, devem pensar que eu vim para roubar suas mulheres e bebida. – Não se preocupem camaradas, vim apenas pelo uísque barato e por um amor gorado.

As mulheres por outro lado expressavam um mix de reações que me agradavam mais, ia desde ao nojo, repulsa, espanto ao interesse. Alguns eram olhos tristes, apáticos e maliciosos, duas em especial gritavam atenção aos meus, um era de uma mulher mais velha, contudo ainda tinha fogo nela suficiente para queimar o resto da Amazônia, ela me olhava com interesse e malicia. Tinha belas pernas a mostra numa saia curta e seios que saltavam do decote. A outra era quase uma menina, ela tava com o namorado, numa mesa cheia de homens sorridentes, eles se olhavam e conversavam entre si e ela no seu canto bebia o que parecia ser vodka, quando descobriu que eu a olhava também, me respondeu como uma verdadeira dama, ela sabia qual era a dança, ela conhecia esse jogo de olhares.

Mas eu não tinha vindo pra isso e ainda assim com as duas belas damas me observando eu não gostava daquele lugar, daquelas pessoas e daquela bebida. Eu estava como sempre estive em relação à Lina, sempre esperando por ela e dizendo não ao que o mundo me ofertava de pernas abertas. Sempre ficando no lugar onde ela possa me ignorar, sempre sendo a próxima cena a ser encenada. Olho que horas são no meu celular antiquado ela, estar atrasada seguindo a sina do seu eterno clichê. Tomo o que resta da dose de uísque e peço outra, então a vejo entrar no bar. Linda como sempre, como na primeira vez que a vi. Ela me procura, eu fico quieto no meu canto bebendo a minha nova dose de uísque com paciência, ela vai me achar, ela sempre acha. Ela observa todos no bar ate seus olhos repousarem em mim, então ela sorri mordendo o lábio e inclina a cabeça tímida e vem ate mim.

Lembro da primeira vez que eu a vi num café perto do meu trabalho, eu estava na hora do almoço e ela também. Trabalho no almoxarifado de uma empresa, ela é arquiteta. Meu chefe diz que o almoxarifado é muito importante, pois fazemos controle de estoque, verificamos as quantidades, fazemos a reposição, controlamos a armazenagem. Somos nós que fazemos as coisas andarem, fazer tudo entrar em seu curso e seguir o seu fluxo. Ele diz que somos nós que fazemos a empresa funcionar, pois o fluxo é o nosso trabalho, somos importantes pra economia e para o desenvolvimento do país, pois enchemos os seus sacos de compra com merda, enchemos os bolsos dos patrões com grana e esvaziamos nossos corpos e almas. Eu tomava o meu café sozinho numa mesa do canto e ela do lado oposto com mais alguns amigos, ela sorria... Era leve e despreocupado, era como se ela fosse cega e nunca tivesse visto a miséria, a loucura e a insanidade que estar ao seu redor. De inicio tive raiva dela pela sua ignorância e sua sorte, depois inveja, mas por fim senti outra coisa que não sei como expressar. Então eu a olhei sem medo, queria tirar da imagem dela tudo que houvesse de bom, como um vampiro. Ela brilhava pra mim e para todos os outros miseráveis, era como a virgem Maria da rua. Ela me viu e provavelmente sentiu o asco que todos sentem pensei, mas ela sorriu pra mim. Um sorriso pode matar ou salvar um homem. Ela ainda sorria pra mim do mesmo jeito, com a mesma estupidez de quem nunca viu a dor de perto, de quem apenas a contempla através de uma tela, numa fotografia sem cor.

Ela senta do meu lado no balcão, falamos sobre nós, ela diz que gosta de mim, de estar comigo. Fala sobre os meses que estamos juntos e do quanto ela quer mais, sobre superar as diferenças... Ela diz que quer me salvar da solidão. O problema do amor não estar em quem ama estar na pessoa amada. Amar é como entregar um vaso da geração Ming a uma criança e dizer – ame isto, é valioso. Ela vai quebrar-lo pra ver-lo em pedaços. Eu a amo, por isso eu a odeio também.

Lembro do primeiro beijo, ela foi delicada quando a puxei pra perto de mim, eu tinha fúria. Tomei o corpo dela contra o meu, senti o cheiro da pele dela e de seu suor doce, provei o seu hálito, queria foder ela.

Eu a amei na primeira vez que a vi e ainda a amo, mas vida é muito maior do que o amor. Sinto uma solidão maior do que antes com ela, sinto uma saudade que faz minha garganta torcer e as diferenças gritarem alto no meu ouvido. Sinto que me perco em cada palavra que eu digo e uma tristeza me toma. Uma lágrima brilha nos olhos dela quando digo que não a quero mais. Não quero mais essa vida, tinha desejado isto pra mim, mas não posso viver assim. Sinto que nunca vou poder mudar e que talvez eu tenha que ser o desajustado para sobreviver, necessito estar a sóis com a solidão.

Ela vai embora, ela não chorou, não brigou e não disse nada como uma mulher de classe. Eu fico debruçado no balcão, peço mais uma dose de uísque, dessa vez sem gelo. Esse é o fluxo, é o meu fluxo e meu negócio. Isso é o que faz minha vida continuar, pulsar. Sinto o choro vim, algumas lágrimas correm sem que eu perceba ou expresse alguma coisa, mas sinto o peito afrouxar mais. Respiro fundo, sinto o ar entrar pelo meu nariz e fazer toda a sua viagem pelo meu sistema respiratório, seguindo seu fluxo, ventilação pulmonar. Bebo a dose de uísque numa tragada, ela desce macia e dessa vez o sinto ser meu.


   
Publicado no livro "Os mais belos Contos de Amor" - Edição Especial - Outubro de 2014