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Ana Carolina Viana Faria
Belo Horizonte / MG

 

Gêmeos idênticos

Eram gêmeos idênticos, mas diferentes em todo o resto. Carlos gostava de rock e tinha cabelos compridos. Marcos gostava de orquestra e seus cabelos eram curtos como os de um soldado. Carlos era fotógrafo amador, enquanto Marcos um eficiente vendedor. Carlos era mais novo por apenas alguns minutos, mas ainda assim parecia mais jovem, mais alegre, sempre bem disposto. Marcos não tinha bom humor. Casado e com dois filhos pequenos para criar, preocupava-se muito com dinheiro e estava sempre cansado.
Embora tivessem personalidades diferentes, eram muito amigos e sentiam-se ligados de uma forma que nem eles sabiam explicar. Na infância, gostavam de pregar peças nas pessoas e, quando queriam, enganavam a qualquer um. Nem mesmo a mãe sabia diferenciá-los, isso é, se não abrissem a boca. Porque Carlos era um tagarela, ao contrário do irmão, menos falante e mais observador. Já trocaram de namoradas, sem que elas jamais desconfiassem. Trocavam de professora sempre que Carlos precisava de uma forcinha para se sair bem nas provas. Marcos fazia as provas por ele e tirava sempre um A, enquanto Carlos arrasava na aula de Educação Física, com direito a gol olímpico e diversas cestas de três pontos.
Nunca passou pela mente de Marcos viver sem aquele irmão cabeça-de-vento. Até que a carta chegou. Uma carta que mudaria a vida de ambos e o rumo dessa história. A guerra não poupava nem mesmo as famílias mais felizes e, assim como inúmeros outros jovens, Carlos foi convocado. Marcos não. Por dois dias um frio na espinha dominou as emoções de Carlos. Ele não queria atirar em ninguém. Não havia nascido para isso. Pelos mesmos dois dias, Marcos sentiu o coração esmagar o peito a ponto de lhe fazer faltar o ar. O que seria dele se o irmão não sobrevivesse? O que seria da mãe deles? Ela não conseguiria suportar. Carlos sempre fora o preferido e Marcos sempre soube disso. A mãe insistia que não, mas ele nunca acreditou. Contudo, Marcos não se importava. O irmão também era sua pessoa preferida na Terra e não culpava a mãe por amá-lo mais. Carlos nascera para ser amado, para viver muitas décadas, para ser feliz e espalhar a felicidade por onde passava. Ele não merecia morrer numa guerra. Não havia forma mais estúpida de perder a vida.
A ideia lhe surgiu enquanto dormia, num sonho, que se passava em uma trincheira, cheia de arames farpados e restos de gente morta. Com certeza eram imagens retiradas de algum filme, impressas em sua memória, e que agora se faziam úteis. “Vou no seu lugar”, disse Marcos ao irmão. “Está louco? Você tem uma família para cuidar”, espantou-se Carlos. Mas embora Marcos fosse calado, sabia ser persuasivo quando queria e acabou por convencer o irmão de que trocarem de lugar era a coisa certa a ser feita. “Sua mulher nunca vai acreditar que eu sou você”, retrucou Carlos, com os olhos marejados. “Você saberá o que fazer”, garantiu Marcos. “Não podemos fazer isso!”, havia certo tom de súplica na voz de Carlos. Marcos pousou a mão em seu ombro, o apertou e mirou os olhos do irmão, como se olhasse para si mesmo através de um espelho. Aquele olhar dizia tudo o que era para ser dito. Colocou o quepe na cabeça e saiu com sua farda, imponente. Com um suspiro profundo, Carlos saiu atrás dele, depressa. “Carlos, está decidido, não tente...”. Marcos foi surpreendido por um abraço apertado do irmão, um abraço de agradecimento... Um abraço de adeus.
Ao longo dos meses que se seguiram, Carlos percebia que aquela vida pacata de homem de família não era tão ruim quanto pensava. Não foi moleza aprender o ofício do irmão, mas por outro lado, enganara a mãe e sua cunhada, agora esposa, com facilidade. Na verdade, ele tinha impressão de que a cunhada desconfiava de quem ele realmente era. Talvez ela fingisse acreditar pelo fato de sempre ter tido uma quedinha por ele. Ou talvez porque era melhor ter um impostor enquanto marido, do que não ter marido nenhum. O maior problema era que ele havia se apaixonado por ela. Amava aquela mulher de muitas formas e tinha a certeza de que estava fazendo-a feliz. Quando Marcos voltasse, esperança a qual Carlos se agarrava com todas as forças, seria quase impossível devolver a esposa para o seu legítimo marido. Foi com mais um suspiro profundo que Carlos se deitou naquela noite ao lado da cunhada, agora sua mulher. Pensou no irmão. “Espero que esteja bem”, sussurrou ele antes de adormecer.
Quando o destino toma uma decisão, não há força humana que pode vencê-lo. A morte assolou aquela família, morte já traçada, adiada, mas não esquecida. Em um acidente de carro fatal, Carlos perdeu a vida. Sua esposa, outrora cunhada, o enterrou desolada. Seus filhos, outrora sobrinhos, choravam amargamente. A mãe chorou seu filho e desejou que o outro voltasse logo. Se perdesse os dois não teria mais razão para viver.
Quando a guerra acabou, Marcos pôde retornar para casa. Levava cicatrizes no corpo e na alma e nenhum remédio no mundo poderia consertar seu coração estraçalhado. Estava surdo de um ouvido devido a uma explosão. Mas foi a notícia da morte do irmão mais dolorosa do que todas as milhares de mortes que presenciara no campo de batalha. Não podia acreditar. Seu irmão querido já não existia mais. Queria ter salvado a vida dele, mas fora em vão. Não podia mais voltar para casa. Sua cunhada, outrora esposa, amargava a viuvez. Seus sobrinhos, outrora filhos, não o reconheciam mais como pai. E num abraço apertado, sua mãe o recebeu, eufórica. Aquele era o filho mais querido, e estava finalmente em casa. “Meu querido Marcos”, declarou ela, “você foi valente, tentou proteger o seu irmão, mas quase me matou do coração”. Marcos estava confuso. “A morte ninguém engana, meu filho amado, mas ela sabe guardar segredo. Agora venha, vamos arrumar seu novo quarto”. Não apenas um novo quarto, como também novo emprego, nova mulher... Uma nova vida. Em seu íntimo disse adeus à esposa e filhos e jurou que viveria pelos dois, pelo irmão e por si mesmo.


   
Publicado no livro "Os mais belos Contos de Amor" - Edição Especial - Outubro de 2014