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Marco Felipe
Sete Lagoas / MG

 

Marte

 

Nessa terra de ninguém...
areia,
poeira,
sequidão,
falta verde,
falta água,
falta vida decente,
sobra aridez,
sobra calor,
sobra clima inóspito.
Esperança quase não há. Luta-se pela sobrevivência dia a dia. Sol que frita ideias, paralisa movimentos, ideais e atitudes, causa inércia.
O deserto é desértico...
Reza a lenda que numa dessas manhãs quentes como outra qualquer, o velho abutre do olho furado voava em círculos a procura de carniça fresca, proteína pro seu esqueleto depenado. O lagarto do deserto largado de barriga pra cima se aquece aos primeiros raios solares e parece não perceber a serpente camuflada e invisível que serpenteia em sua direção. O ataque é iminente. O lagarto percebe a ameaça e contra-ataca primeiro, travam um duelo sem fim, se engalfinham, se contorcem, num frenético dançar, se enrolam, se misturam, num frenesi mútuo.
O abutre que de bobo só tem o piado, pousa para assistir o desfecho da luta e aguardar a refeição matinal. A tarântula capenga faltando um par de pernas, o escorpião sem o seu ferrão e o ratinho banguela param sua conversa fiada debaixo da sombra do cacto e observam de longe aquela cena. Torcem para o amigo lagarto vencer aquela luta, pois todos eles já haviam passado pelo mesmo duelo com a serpente e por isso ficado com essas sequelas.
– Por que não ajudamos nosso amigo? Exclama o escorpião angustiado.
– Agora não posso, tenho mais o que fazer, diz a tarântula arrogante, saindo de fininho entre as pedras.
O ratinho medroso rói suas unhas e se enterra na areia sem dar resposta. O escorpião valente então fica criando coragem para se aproximar e ajudar seu amigo, enquanto o velho abutre ansioso e faminto nem pisca o olho.
De repente o chão treme e a areia se agita. Alvoroço. Uma tempestade de areia se forma, se aproxima subitamente e arrasta consigo todos eles naquele turbilhão.
Ter problemas não te isenta do dever de ajudar nas necessidades do outro por que andar sem rumo na vida é como estar no meio de uma tempestade de areia, você fica rodando em círculos sem rumo e sempre volta para o mesmo lugar. Deixar-se levar pela ansiedade e pelo imediatismo é como cair em areia movediça, quanto mais se debate mais se afunda.
Tem gente que acha que vive em Marte, distante de tudo e de todos, alheio à dificuldade alheia, alheio aos descaminhos do mundo.
Onde você pretende chegar sem bússola?
Qualquer lugar serve quando não se tem destino.
Vivem por viver, sem compromisso com o que acontece à sua volta. Pessoas que não enxergam um palmo à frente do nariz, porque estão de cabeça baixa, preocupados demais com seu umbigo, seja ele profundo ou estufado, lisinho ou cabeludo, não importa, mas que são incapazes de passar um cotonete para limpá-lo, só observa-o.
A tempestade passou e quando a poeira baixou a serpente havia sucumbido tragada pela areia movediça. Ao lagarto resta-lhe a cauda perdida que por sorte crescerá novamente. Os seus amigos se reúnem novamente aos pés do cacto para comentar o reboliço, e o velho abutre faminto, com suas asas cansadas, alça voo novamente à procura incansável de alimento pro corpo.
Realmente o deserto não é desértico..
.

 

 
 
Conto publicado no "Livro de Ouro do Conto Brasileiro" - Novembro de 2016