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Romilton Batista de Oliveira
Itabuna / BA

 

A descoberta

 

– Boa noite!
Entra apressadamente o Sr. Inocêncio no único restaurante daquela pacata cidade, onde todo mundo conhecia todo mundo. Era uma pessoa muito amável mas tinha um grande problema: não via nas pessoas nenhuma qualidade ruim. E sentando-se em uma das cadeiras vazias pede cordialmente algo ao garçom. Perdoe-me, aqui nesta longínqua cidade do sertão as pessoas costumam chamar o garçom de “mayor” ou simplesmente “encomendador”. Não se sabe o porquê, mas imagina-se que é aquele que encomenda algo na cozinha, e a cozinheira depressa prepara a encomenda. Melhor dizendo, a preparadora.
– Boa noite!
Entra não tão apressado como o Sr. Inocêncio, o Sr. Silêncio. Entra devagar e silenciosamente. A única palavra dita por ele é “Boa noite!”. O encomendador já imagina o que ele vai pedir e depressa aciona a preparadora. O Sr. Silêncio come há anos a mesma coisa. Mas neste dia algo aconteceu. Ele abre a boca e diz:
– Quero arroz, ovos frito e batatas fritas, please!.
O narrador luso-brasileiro, esse que vos fala, conhecedor de linguística, literatura e cultura, reconhece que a língua falada por Inocêncio é uma língua cansada e rasteira devido a sua idade. Inocêncio era um “jovem” que já ultrapassara os 80 anos, mas o seu silêncio era transcendental e movido por uma potência rejuvenescedora. Todos o admiravam por seu silêncio poético, líquido e movente.
Todos os moradores que estavam ali ficaram admirados e ao mesmo tempo assustados com o que estavam a presenciar. A cena que agitou a pequena cidade Ribanceira dos Esconderijos foi notícia para vários dias de inquietação. Era uma cidade que nada acontecia há mais de vinte anos. Uma cidade afastada do tempo e da brasilidade humanamente linguística e histórica. Tudo girava em torno do mesmo. Não havia novidade nem mudanças. As pessoas sempre apareciam no restaurante do Sr. Washington que muito alegre atendia a todos sempre no mesmo horário e todos comiam a mesma coisa, falavam dos mesmos assuntos e na mesma língua de sempre, com as mesmas e repetidas expressões idiomáticas.
Mal seus moradores não sabiam o que estava para acontecer naquele pequeno e humilde lugar. Veio de muito longe um homem chamado Sr. Descobrimento. Ao entrar no grande e claro salão, ele disse:
– Boa noite a todos os presentes! Como estão todos nesta cidade?
O homem falava com um sotaque carregado de um tom afro-luso-brasileiro, misturado com a sua incansável viagem pelo Brasil. Em cada lugar ele aprendia algo. Sabia por outras línguas que esta era uma cidade parada no tempo, uma cidade fixada no espaço paralisado por sua homogênea gente. Era um viajante que conhecia todo o mundo e faltava apenas para completar a sua jornada como descobridor do desconhecido conhecer esta cidade que guarda há anos histórias repetidas de manhãs envelhecidas e noites escondidas.
Ninguém respondeu ao viajante. Todos ficaram em silêncio. Mas o viajante insistiu, e novamente tornou a dizer:
– Boa noite a todos os presentes! Como estão todos nesta cidade?
E novamente todos permaneceram em silêncio. Havia algo muito estranho nesta gente, pensava o Sr. Descobrimento que insistiu novamente, e, pela terceira vez, disse em alta voz e com um tom sibilante e desbravador:
– Boa noite a todos os presentes! Como estão todos nesta cidade?
Um homem que ficava lá no fundo da sala, vestido de paletó e gravata, retrucou:
– What is your name? Where are you from? Do you speak English?
Todos os moradores de Ribanceira dos Esconderijos começaram a falar entre si:
– What is happening? What language he is speaking? E começaram a rir, dar grandes gargalhadas como nunca se ouvira naquela cidade. Algo diferente estava acontecendo naquele lugar. Pela primeira vez todos riam de uma mesma coisa, porém cada um ria o seu riso, em seu tom, um riso solidificado e sem a marca da rasura do tempo.
O Sr. Descobrimento começou também a rir, porém um riso diferente de todos: um riso misterioso, indecifrável, riso de descobridor que acaba de descobrir o vazio de si. Ele descobriu que existia uma cidade que nela viviam pessoas que falavam inglês, e que apesar de não falar reconhecia o cheiro da língua a gemer sem sentir dor pelas beiras de fogueiras acesas pelos falantes daquela imóvel cidade. Descobriu, depois de vários dias, que naquela cidade ninguém falava português. E pensava consigo mesmo: Como pode ter sobrevivido uma cidade dentro do Brasil, no interior do interior perdido um povo falante de uma língua tão longínqua que não faz parte de nossa herança colonial?! Como pode ter sobrevivido uma comunidade separada, sem comunicação com o mundo brasileiro?!
Descobriu o Sr. Descobrimento que há coisas na vida que a tradução jamais traduzirá, e que há mistérios que jamais o homem com seus instrumentos de saber-poder descobrirá. Voltou para casa em silêncio com a certeza de uma grande incerteza: O homem não sabe de nada. Chegou à conclusão de que o que ele pensa que sabe lhe basta. E concluiu a sua grande viagem descobrindo que tudo na vida se resume em viver sem nunca ter vivido, e nesse nunca ter vivido perder-se para se achar... e novamente se perder, e depois se achar, e novamente se perder, perder-se, e depois dormir, dormir, dormir, com o dever de ter cumprido a sua missão aqui nesta terra repleta de sons, magias, encantos, contrastes, diferenças e alucinações.
Descobrimento descobriu o que ninguém ainda havia descoberto, e em seu silêncio voltou para a sua primitiva vida. O seu retorno foi significativo porque ele voltou amedrontado e consciente de que tudo que ele aprendeu sobre a vida está em movimento, e que nem sempre saberemos de tudo. Haverá sempre algo a escorregar no vazio do tempo e do espaço que não nos cabe desvendar, apenas meditar, meditar, e depois dormir, sem precisar acordar no outro dia com o corpo do velho homem e levantar com o mesmo rosto de outrora. Pois o rosto pode ser o mesmo, mas o coração e alma permanecem modificados pela experiência do que foi e do que provavelmente virá – o devir divinal. Ninguém se levanta do mesmo jeito como se levantou no dia anterior. Cada levantar abre a esperança de uma janela estupidamente fechada por nossa incapacidade de gerir a vida de forma nua, poética e bela, porque nos falta algo que jamais será preenchido. E é exatamente isto que dá sentido à vida e a potencializa nesta eterna incompletude, numa poética rasura e numa estranha interrupção da existência humana e de todos os sonhos planejados para serem realizados.
E Descobrimento descansou de tudo. E em seu repouso eterno, atravessou os limites da vida na própria vida. Levantou-se um novo homem, molhado por águas passadas, águas que iluminam a sua vívida existência, sem precisar de explicações. Apenas ressignificado por sentidos indecifráveis, pois saber viver é andar pelos rastros/resíduos que a vida nos oferece, formando belos versos de nossa potente e movente poesia que é a vida humana, um rastro traumático que nos torna seres repletos de formações ideológicas, pensamentos e discursos feitos de fogo, ar, terra, luz, água e movimento.

 

 
 
Conto publicado no "Livro de Ouro do Conto Brasileiro" - Novembro de 2016