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Sonia de Fátima Machado da Silva
Coromandel / MG

 

De algum lugar do passado

 

Era uma vez uma menina... Os cabelos castanho-claros e curtos, com franjinhas acima das sobrancelhas, desafiavam o vento naqueles domingos primaveris. Os olhos pequenos já enxergavam o mundo e às vezes o subvertia nas brincadeiras de faz de conta... Já havia brincado de mãe com sua velha boneca Rosângela, fazendo-lhe roupinhas de retalhos. Mas nunca se tornara mãe de fato. Gostava também de brincar de secretaria à sombra do abacateiro, e quando isso acontecia, ela se imaginava de saltos altos e tailleurs sóbrios escrevendo o dia todo naquelas máquinas de escrever antigas. Às vezes olhava por cima dos óculos entre o tec tec das teclas rústicas. Isso a fascinava e algum tempo depois fazia exatamente isso.
Mas apesar desses sonhos de mulher executiva, se apaixonou por Olavo Bilac e Cecília Meireles desde menina e em algum lugar de sua mente infantil amadurecia a essência poética.
Aquela menina de sete ou oito anos, tinha um sorriso fraco e tímido num rosto magro onde se sobressaia a saliência óssea. Não que fosse desnutrida, mas as longas caminhadas até a escola rural distante queimavam, com certeza, as reservas de calorias.
Vestia sempre vestidos de flores miúdas ou de bolinhas Às vezes eram enfeitados de rendas, sianinha - espécie de fita em zigue-zague -, fita de ponto russo ou cetim nas bainhas. Mas eram sempre rodados, com detalhe franzido desde a cintura e mostrava sempre os joelhos, duas rótulas protuberantes, onde as carnes ainda eram mínimas, afinal andava quilômetros até uma escola distante. Das pequenas mangas bufantes sobressaiam braços frágeis que às vezes se cruzavam ao peito tentando mostrar já certa independência ou um quê de alguém pronto para enfrentar o mundo com suas intempéries.
Os pezinhos miúdos arrastavam sempre os velhos chinelos havaiana azul claro e branco e, ágeis, subiam o espigão resfolegando até os verdes campos de setembro a misturar-se às borboletas e grilos. Eram sempre manhãs de domingo. Mas antes disso havia chovido e quando a primavera chegava já havia brotos de capins e entre eles muitas margaridas. Todas amarelas, em pequenas moitas rasteiras ou solitárias e esguias balouçando ao vento. A menina ficava tão extasiada com tudo isso. Tudo era mágico. As margaridas amarelas exerciam sobre ela uma estranha fascinação e então as mãozinhas pequenas iam colhendo-as. Ela precisava fazer isso. Era como um ritual o ato de colher margaridas.
Mas um dia a menina cresceu e partiu para um mundo de concreto. Era preciso. E depois as primaveras partem. Só que na estação da vida elas não são perenes, exceto, claro, na alma. Mas no mundo de concreto, a alma tem a triste tendência de não regar suas flores, principalmente em meninas que conhecem o primeiro beijo ou, talvez, a necessidade de lutar pela independência. Foi por isso que as margaridas que tanto fascinaram a menina ficaram para trás, em um passado, cujos campos, pouco a pouco, foram também invadidos pela modernidade. Já não mais floriam. E nos campos de concreto a menina foi sobrevivendo.
Então ela conheceu o menino de olhos lindos e rebeldes e que sorria com o canto dos lábios e, que, numa noite de lua cheia lhe mostrou o paraíso. O menino que também era poeta e jurou-lhe amor eterno diante da imagem de Cristo... Ele de terno cinza e ela de branco com flores cor de rosa nos cabelos enrolados à moda babyliss... O menino que um dia deixou os cabelos longos sonhando ser artista de banda sertaneja. O menino que lhe fez canções... Algumas tardes ele tocava para a menina e ela dançava, dançava... Ele olhava para a menina e havia adoração em seus olhos. Nessas tardes riam juntos. Às vezes pescavam no velho rio do recanto da infância da menina...  Enquanto ele jogava o anzol, ela ficava deitada na areia olhando céu... Nos sábados e nas quermesses saiam de mãos dadas e nas manhãs de domingo cantavam no coral da Igreja...
Mas todo conto de fadas tem o lobo mau ou uma bruxa má. Então o lobo mau ou a bruxa má entraram na história da menina.  Não se sabe exatamente qual dos dois. O que se sabe é que eram líquidos e queimavam a garganta e iam subindo para o cérebro causando um torpor e afetando o comportamento do menino. O menino poeta encantou-se e quis cada vez mais beber suas doses. Traziam-lhe euforia, davam-lhe coragem e ainda levavam supostamente para longe todos os problemas. Quando acordava ele queria mais. Sempre mais. E assim foi destruindo os próprios sonhos.  Até que um dia, sua labilidade emocional o transformou num ser violento e ele destruiu também os sonhos da menina, que de tão triste começou a escrever versos. Era primavera e de algum lugar do passado renascia as margaridas amarelas em cada poesia sua...

 

 

 
 
Conto publicado no "Livro de Ouro do Conto Brasileiro" - Novembro de 2016