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Anchieta Alves de Santana
Uruçuí / PI

 

Os caninos do meu avô

 

         

           Era tarde de verão no povoado Sangue, onde morava José Pereira dos Santos, o popular José Delmiro; meu avô materno. Homem de sabedoria rara e humilde. Foi quem ajudou a desbravar aquela região do Cerrado onde nasceram meus pais e eu também. Aquele era mais um dia em que ele se contorcia com uma dor de dente que teimava em não ceder. Já havia usado todos os produtos naturais, benzedeiras, defumadores e tudo que a sabedoria popular indicava e o “diabo do dente não parava de dar pontadas”. Esta era uma reclamação constante. Então, não restava ao meu avô, outra saída: tinha que ir à cidade. Cinquenta quilometro sobre lombo de cavalo campeiro e/ou a pés. Não tinha dúvidas de que “alicate” era o único remédio capaz de por fim, de uma vez por todas, àquele sofrimento impiedoso. Já não dormia e nem se alimentava mais adequadamente.
           Ao romper do dia seguinte, pôs o “puçá´” num saco de fibra e uns trocados no bolso e partiu sob o sereno do amanhecer. Puçá lá no Sangue é rede de dormir.   Viajou quase o dia inteiro; às dezesseis horas entrou na cidade. Na realidade, àquela época, Urussuhy se resumia a um pequeno vilarejo que se imprensava e se deliciava às margens do generoso rio Parnaíba. O povo vivia ali, admirando, banhando e bebendo nas águas tranquilas do “Velho Monge”. Este e os rios Urussuhy Preto e Balsas já formavam uma bela parceria em nome da vida. Naquele tempo, ainda não se falava em Maria Laura, José da Malária, Félix Maribondo e a vida cheirava tranquilidade absoluta. Apesar de ser uma época em que já tinham estraçalhado, nos desvãos de uma cadeia pública da vida cidade vizinha, o mestre de balsa por nome Julião. Executado com os mais bárbaros requintes de crueldades após se envolver num assalto.  
         Chegando à cidade, o vô José Delmiro foi direto à casa da Tia Joaquina, uma parenta hospitaleira, que logo indicou onde residia o único dentista da cidade. Na verdade, era um prático. Alguém que, com um alicate à mão se aventura nas dentaduras necessitadas. Mas apensar de ser apenas prático nos serviços odontológicos era conhecido como Doutor fulano de tal. Meu avô não se recorda do nome do tal dentista, mas se lembra de que ele tinha um porte atlético e era muito econômico nas palavras. Chegando ao consultório improvisado nos fundos de um casebre, onde tinha sacos de legumes amontoados e mais umas tralhas imprestáveis, o médico o recebeu e foi logo questionando:
    - Há quanto tempo está sofrendo com essa dor de dente?
    - Já vai pra mais de dezoito dias. E já usei de tudo e não teve jeito. Nem o leite de cansanção, que é um ótimo remédio, deu jeito. É uma dor maldita que insiste em não me deixar em paz.
   - Vamos então, examinar esse danado. Disse o dentista em voz branda. 
       Meu avô olhou nos olhos graúdos do velho dentista de barba ruiva e propôs:
   - Você tem coragem de “arrancar” esse dente que está doendo e todos os parentes d´le?
  - Como assim?
 - Quero que você arranque todos os dentes que restam em minha boca. Não quero mais ser vítima desse sofrimento.
  - Não, isto não pode. Você não aguenta. Além do mais é um atentado à saúde. É um crime.
 - Seu doutor, crime é essa dor horrível. Atenda a esse pedido, pelo bem de seus filhos. Não quero mais esse sofrimento. Pago adiantado pelo serviço.
  - Tudo bem, se você quer assim, vamos lá.
           E assim aconteceu. Ele ficou mais de duas semanas na cidade; tempo suficiente para deixar a boca despovoada. Ficou “banguela”. Algum tempo depois, mandou confeccionar um “par de chapa ” para auxiliar na fala e na trituração dos alimentos.
           Ao relatar esse fato, meu avô, num sorriso largo e bonito, se vangloria do feito; e se duvidarem, mostra a velha e resistente dentadura postiça. E ainda diz que hoje já não se faz dentes como dantes.

 

 
 
Conto publicado no "Livro de Ouro do Conto Brasileiro" - Novembro de 2016