Ediloy A. C. Ferraro
São Paulo / SP
O
dilema
Quando tocava o telefone, seja o fixo ou celular,
sentia um incômodo, as mãos ficavam frias, temia
pelos cobradores sempre mais insistentes. Estava na situação
de haver muito mês para pouco salário. A organização
financeira pessoal estava um caos, com extenso rol de responsabilidades
pendentes, tirando-lhe o sossego. Como bancário temia ser
incluído na lista do SPC, ameaçando o emprego. As
contas eram empurradas com a barriga, negociando prazos, apertando
aqui e ali. Não fora a tentação de recorrer
a outros meios para se desafogar, poderia continuar no esquema
de ir protelando, porém, precipitado, foi socorrido por
um agiota, com juros escorchantes, para quem não tinha
muita conversa fiada. Foi um abraço de afogado, vendera
a alma, não conseguia equacionar aquela dívida interminável.
Na terceira renegociação não havia mais argumentos,
a coisa estava ficando feia, insustentável. Temia acordar
no meio da noite e não mais conciliar o sono, num processo
de autoobsessão que o martirizava. Definhava a olhos vistos,
aparentando alheamento e depressão.
Não raro ajudava na tesouraria, contando montanhas de
notas, parecia um paradoxo tanta soma à mão, e ele
sem vintém. Ironizava consigo mesmo, lembrando a saudosa
mãe que dizia ter lido a sorte com uma cigana e a mesma
ter afirmado que muito dinheiro passaria pelas mãos de
seu único filho, de certa forma não errou. O problema
era que apenas “passava”, parecendo um faminto trabalhando
no preparo de alimentos, sem poder saciar-se.
Há dias evitava encontrar-se com o credor ávido
e mal educado, parecendo ameaçá-lo. Fugia deste
como o diabo da cruz, tentando ganhar tempo, buscar uma saída,
uma solução, sem saber qual seria, ou a quem recorrer.
Ele poderia colocar em cobrança alguns dos cheques, que
voltariam por falta absoluta de fundos, e ficaria desempregado,
mas, pensava, não poderia interessar a ele a sua falência,
condição em que também perderia.
Barbeava-se pela manhã, preparando-se para mais um dia
de trabalho, quando tocaram a campainha do apartamento. À
porta estava o dito cujo, com olhar de trunfo por encontrá-lo,
saboreando o encontro, entrando na sala sem esperar pelo convite.
Passeou os olhos pelo ambiente, modesto mas bem arranjado, como
quem avaliava as posses do devedor, contabilizando o seqüestro
de algum bem. A forma como foi descoberto o seu endereço
o deixava ainda mais confuso, por certo tinha informações
sobre ele, nunca forneceria seu paradeiro a estranhos. E, sem
precisar dizer palavra, o intruso esperou pela iniciativa do assustado,
esbanjando-se à vontade no sofá, como se fosse íntimo
da casa.
Na troca de olhares, que dispensava comentários, lia-se
o desespero do pobre, com espuma de barbear ainda no rosto, mortificado
pela surpresa desagradável. Ficou atônito e mudo,
olhando patético e petrificado para o visitante. Instantes
que pareceram séculos, o medo e a impotência estampados,
como uma caça encurralada pelo predador.
Tomando a iniciativa, resoluto e implacável, contabilizava
os juros sobre juros, fazendo uma matemática rápida
e temerária, mostrando em numeroso buraco em que se metera
o incauto. Exigiu um cheque em branco, confiscaria o décimo
terceiro, a receber dali a dois meses, além de uma promissória
exigindo o aval de algum parente ou amigo, a ser entregue incontinenti,
no prazo de dois dias. Não perguntou se concordava, se
as contas estavam certas, apenas fez seus cálculos e exigências.
Sabia que o tinha à mão, feito uma marionete, aterrorizado.
Quando viu-se só, parecia que o mundo tinha desabado, sentiu
cólica intestinal e por pouco não se sujava todo,
necessitando de novo banho. Estava aflito, sem rumo. Teria um
dia inteiro pela frente, no atendimento de filas intermináveis,
fazendo pagamentos a idosos e a clientes nem sempre pacientes,
onde obrigava-se a ser simpático e atencioso, disfarçando
o conflito íntimo que o consumia. Nem tirou o café
da cafeteira, desabando inconsolável sobre a poltrona,
esmiuçando alternativas, tentando concatenar alguma idéia
que o socorresse, ou pelo menos lhe desse algum fôlego.
Se o décimo terceiro já não lhe pertencia,
poderia antecipar as férias. Não seria a primeira
vez que abriria mão de alguma viagem, consolaria-se com
a leitura de algum livro ou a passeios na própria cidade,
sem maiores custos.
Naquele dia fora designado para trabalhar num posto de serviço
dentro de uma empresa, era dia de pagamento dos funcionários.
Enquanto se preparava para o atendimento, contando o dinheiro
que recebia no caixa, a fila externa se avolumava. Todos os colegas
se agitavam nos preparativos para o labor intenso que se iniciaria
a seguir.
No decorrer do expediente, o local atulhado de clientes orientados
em fila única, o vozerio da pequena multidão que
mostrava inquietação, alguns portando contas a serem
descontadas dos pagamentos a serem recebidos. Tudo dentro da normalidade
do quinto dia útil, até que uma voz forte, dissonante,
se fez ouvir, autoritária e imponente, ecoando no ambiente
e pondo todos em silêncio. Eram três homens, de fala
rápida, nervosos, intimidando os presentes e os funcionários
com seus revólveres ameaçadores, dando ordens de
um assalto.
Em gestos velozes dirigiam-se aos caixas ordenando que passassem
os maços de notas para fora do balcão, as coisas
acontecendo em segundos de ansiedade e de temores, o receio de
serem alvos daquelas armas apontadas.
Na entrega das notas encintadas em maços de cem reais,
dois volumes caíram e, no afogadilho dos meliantes, ficaram
despercebidos por todos, ficando no chão, no lado interno
dos caixas, praticamente dentro do seu guichê de serviço.
Encostado na parede, evitando qualquer movimento suspeito, mantinha-se
imóvel, observando aqueles dois maços esquecidos,
bastaria empurrá-los com os pés, disfarçando
no cesto de lixo, ninguém perceberia, ficaria à
conta dos assaltantes, o Banco se ressarceria da Seguradora, e
ele estaria a salvo de suas encrencas financeiras.
Momentos em que transpirava pelo corpo todo, afogueado diante
à possibilidade do ilícito, martirizado pelas circunstâncias
de angústias acerbas que o vitimava. Todos os seus valores
pareciam falir diante àquela circunstância tão
propícia e oportuna, bastavam poucos gestos, ninguém
daria conta, todos estavam apalermados com o inusitado. Desenrodilhava-se
diante a si todas as suas inquietações, o receio
de ser pilhado e preso, em contraste com a possibilidade de sair
ileso e com os problemas resolvidos. Decisão que reclamava
uma atitude urgente, não restando espaços para vacilações,
seria o tudo ou o nada. Entre o gesto extremo e a apatia, contudo,
residia toda as suas convicções e valores, postos
em xeque pela conjuntura asfixiante. A lembrança de suas
dívidas, a ameaça tácita do credor irredutível
e truculento o impulsionavam ao delito, a sua formação
o impedia de agir, num dilema atroz.
Pressionado, sentiu a cabeça, em rodopios, as faces avermelhadas,
a transpiração ofegante dando conta de seu suplício,
até o desmaio despropositado, gerado, possivelmente, pelo
estresse extremado.
Acordou, horas depois, no ambulatório médico da
empresa, medicado com tranqüilizantes, sendo assessorado
pelo representante sindical da categoria profissional, que procurava
acalmá-lo. Negociado com o Banco uma licença de
15 dias, bem como, a título de indenização
pelos transtornos, o valor de um salário integral, sem
descontos.
Ao quitar seus compromissos, sentado na praça de um jardim,
revivendo suas lembranças, só querendo refletir
e afastar de si a tentação que teve em participar
daquilo. Considerando com seus botões de que sim, dependendo
as condições e situações, podem propiciar
o ladrão, mesmo a alguém de quem jamais poderia
esperar, tido acima de qualquer suspeita. Ou ainda que não
sabemos exatamente quem somos, ou como agirmos diante a tentações
e pressões. Ele mesmo duvidava de si, e de qual atitude
teria tomado, caso não apagasse naquela circunstância.
Seria vencido por suas fraquezas e seu desespero, ou resistiria
com suas convicções e caráter? Restava a
dúvida a amargar sua consciência.
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