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José Luiz da Luz
Ponta Grossa / PR

 

A voltinha do rio


Uma das virtudes dos rios é a habilidade de desviar obstáculos, descobrir o melhor caminho, deslizando sem esforço, obedecendo simplesmente à lei do desnível para se chegar ao mar. Aos olhos humanos os rios parecem escolher os caminhos mais irregulares, mas no aparente caus existe uma profunda regularidade.

Dizia-se no povoado das Barracas do Ipiranga que o curso de um rio forma letras enigmáticas, que se decifradas, contam histórias ou mensagens lindas. Por muito tempo aqueles moradores tentaram decifrar o significado do curso inusitado de um riacho daquele lugar, pois ladeava a estrada, mas ao se aproximar da cidade fazia uma peculiar volta, adentrando na mata formando a letra grega ômega. O lugar era conhecido por todos como “Voltinha”. Muitos frequentavam para pescar, tomar banho, ouvir músicas, se divertir... Voltinha era mais que um ponto turístico, era o recanto de enleio onde se faziam realidade muitos sonhos e felicidades. Os mais transcendentais pernoitavam para meditar ouvindo o rumor das águas, sob as luzes das estrelas, porém os mais sensitivos sentiam os ossos do crânio gelar pelas estranhas sensações do desconhecido. Eram fartos os relatos de que naquele lugar vagava um vulto de uma linda cigana num bote sobre as águas.

Era a história da cigana Marta e de seu marido Romã. O casal nômade, encantado com aquele recanto, decidira ficar ali por algum tempo, ergueram uma tenda e organizaram os pertences. O cigano Romã, profundo conhecedor de magia e da natureza, pressentira que naquela Voltinha havia uma linda mensagem escrita. Com o peito palpitando de amor desejou decifrá-la, para depois escrever numa carta e entregar a sua amada como prova de amor. Na madrugada enquanto a cigana Marta sonhava, descera ao rio com uma lanterna, mas um buraco na margem foi o suficiente para que se desequilibrasse e sumisse nas águas. Quando a cigana Marta despertou estava só, seguiu as pegadas na relva e desvairou ao vê-las findar nas águas. Seu corpo queimava de febre pela dor do amado que se foi, e num profundo ritual de amor suplicou a Deus que a levasse junto dele. Num súbito desmaio suas vistas se escureceram, ninguém soube se sonhou ou se foi uma visão, mas ouviu uma voz no meio de uma luz dizendo: “Teu amor é puro demais, por isso mereces ficar junto do teu amor. Mas, antes precisas pagar a dívida com o rio. Romã vacilou com as águas e partiu devendo uma mensagem, pois não conseguiu decifrá-la a tempo, agora tu terás que fazer isso. E quando aparecer nesta Voltinha alguém com um coração tão puro quanto o teu, tu deverás revelar a mensagem, então estarás livre para seu amado.” Depois disso a cigana Marta deu um longo suspiro, olhou para as águas e num rápido mergulho desapareceu. Ninguém descobriu se morreu ou se está escondida, o que se sabe é que sempre aparece um vulto de uma cigana nas águas.

Foi numa primavera que Clarinha ia se casar, menina pura que amava loucamente o noivo deficiente físico, para ela o amor era tudo. Muito eufórica entrou na Voltinha para meditar e pedir a Deus felicidade na vida futura. No clarão da lua apareceu a Cigana Marta numa canoa e disse:

— Clarinha, há anos procuro um coração puro e encontrei em ti. Decifrei as letras do rio e faço de ti conhecedora de uma linda mensagem, para que depois escrevas numa carta para o teu amado.

Depois de breve soluço a Cigana olhou ao céu e começou a narrar:

— “A abelha pressente a ternura da flor, ela não chega em qualquer uma, mas só naquelas que sente o cheiro do néctar. A flor aperfeiçoa seu perfume, escolhe o melhor aroma dentro do botão, dá tudo de si para deixá-lo com o aroma do amor, para só depois atrair a abelha. Dá-lhe seu néctar, o que tem de melhor. A abelha, por sua vez, cumprimenta-a, alimenta-se e segue em frente. Ela não está presa à flor, mas em profunda gratidão segue espalhando o pólen multiplicando as flores, mas sempre volta pois no outro dia há novo néctar. Porque está escrito: as abelhas e as flores se completam.

O vento vem e a flor dança. A flor não consegue amarrar o vento, ele segue seu destino, mas jamais será o mesmo, porque seguirá perfumado. O vento jamais se fere nos espinhos, porque é sutil o suficiente para não se ofender nem machucar. Porque está escrito: os ventos são livres, mas levam lembranças.

A flor se desfolha no solo que lhe deu vida, por sua vez o solo agradece e retribui dando mais vida. Porque está escrito: a vida continua em outras vidas.

O rio corre ao lado da flor, deixa um pouco de sua água, mas também leva um pouco de suas folhas. A flor não para o rio, o rio não leva a flor inteira. Um não se prende ao outro, a flor sempre se fartará do rio, mas de águas diferentes, e o rio sempre levará novas folhas. Porque está escrito: nunca somos a mesma pessoa.

Quando a humanidade evoluir, aprenderá que essas são algumas maneiras de amar.


   
Poema publicado no livro "Contos Livres" - Edição Especial 2014 - Setembro de 2014