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Lourival da Silva Lopes
União / PI

Papel de urtiga



Há fatos que acontecem em nossa vida que não podemos esquecer. Mesmo que tenham acontecido em nossa adolescência, é impossível dissociá-los de nossa vida presente. Hoje, vejo a minha vida passada como uma grande aventura da qual saí vivo e ileso. Mas nada foi planejado, e se o foi deu tudo errado. Às vezes, é necessário que algumas coisas deem errado, para marcarem o caminho certo.
Vou direto ao ponto.
Em 1975, fui estudar em Teresina, a capital do Piauí. Havia passado no teste para ingressar na ETFPI (Escola Técnica Federal do Piauí). O problema inicial é que eu não tinha para onde ir. Mas minha mãe lembrou uma prima que era viúva de um irmão de minha avó. Morava nas proximidades da avenida D. Severino, que saía da Kennedy e ia até a Nossa Senhora de Fátima. Era uma avenida nova, com poucas casas e muito mato, principalmente unha-de-gato, uma madeira típica da região com a qual se faziam estacas para cercas de arame farpado. A casa que me acolheria ficava no meio do mato, em uma lareira aberta e servida por uma estreita rua de chão. Já tinha luz elétrica e água encanada. Mas a casa era de taipa e coberta com palha de palmeira babaçu. Possuía uma pequena cozinha, com fogão a lenha e um fogareiro a carvão. E um quarto onde minha tia dormia com os dois filhos menores do segundo casamento e as duas filhas maiores do primeiro. Na única sala, que havia, dormia o restante da família, os filhos do primeiro casamento, que eram três homens. O mais velho era o único a trabalhar. Ganhava um salário mínimo como motorista na Secretaria de Obras do Estado. Era com esse dinheiro que sustentava toda a família: oito pessoas.
Com a minha chegada, a casa ficou ainda mais apertada. Mas o acolhimento da família transformou aquele lugar em um espaço muito grande. O arroz com feijão, ovo ou sardinha era agora dividido entre nove pessoas.
Para tomar banho, a gente utilizava um banheiro de talo de coco improvisado do lado de fora. Não havia fossa, nenhuma estrutura de saneamento. Às vezes, depois de almoçar, cansei de sair correndo, me desviando de unha-de-gato e procurando um lugar escondido para defecar. Era o mato o lugar improvisado para banheiro a céu aberto. Um fedor insuportável era espalhado pelo vento, sentido até na rua estreita. Era comum as pessoas passarem com a mão pressionando o nariz, por causa da catinga. Não havia outro jeito. Mas o pior era na hora de limpar. Sem papel higiênico, o jeito era utilizar folhas ou um pedaço de madeira ou um sabugo de milho.
Um dia, depois de uma dessas necessidades, olhei para os lados atrás de uma folha para fazer a limpeza. Dei fé de uma moita em forma de rama bem verdinha. Nem fui verificar o que era. Peguei as folhas e fiz a limpeza rapidamente. Mas, enquanto me vestia, senti algo estranho: uma coceira insuportável fervilhava em toda a região glútea. Quanto mais eu coçava, mais aumentava a coceira. Era meio dia. Estava quase na hora de pegar minha bicicleta rumo à Escola Técnica, para assistir aulas de física, química, literatura e biologia. Aquela coceira me agoniava tanto que eu comecei a xingar. Xingava tão alto que o povo das casas ouvia. Quando saí na rua estreita de chão, meus primos já me esperavam sorrindo:
- Rapaz, esquecemos de te dizer. Embaixo dessas unhas-de-gato, só tem urtigas. Tu deve ter limpado com urtiga.
Aguentei firme. À noite, quando voltei da escola, ainda senti as dores provocadas pela coceira da urtiga.
Nunca esqueci esse acontecimento. Mas só agora tive coragem de narrá-lo.


   
Poema publicado no livro "Contos Livres" - Edição Especial 2014 - Setembro de 2014