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Rubens Alves Ferreira
Taguatinga / DF

 

Moleques, heróis e brincadeiras

 Carlinhos, oito anos, foi para Formosa de Goiás morar com os avós. Cidade do interior, mas diferente do ambiente rural de pastos, de pomar, de morros, do rio, do curral, da criação, do casarão da fazenda e das casinhas de pau a pique onde passou parte da infância. Os avós e Joana, uma das filhas, ainda solteira, respondiam pela casa. Carlinhos logo conheceu Jericó, primo e vizinho mais velho que ele, cerca de quatro anos e que se tornou seu fiel companheiro e guia.
A atividade normal deles era perambular pela cidade e fazendas próximas aprontando de tudo um pouco, desde brincadeiras, pequenos serviços e principalmente, muita traquinagem... traquinagem  como passear pelo centro da cidade e próximo à praça do coreto, prefeitura e rodoviária, pularem o muro de uma casa e promoverem uma limpeza espontânea e seletiva no lote para o dono, recolhendo garrafas entulhadas de Crush, Mirinda, Bidu, Guaraná, Coca-Cola e de cerveja, repetindo as visitas e aprimorando a seleta que, ao que parece, não incomodava os donos; pois a pilha de garrafas diminuía, até o ponto de Jericó decretar o fim do trabalho voluntário não remunerado.
Após muita agrimensura –  “medir rua”, como dizia o avô Feliciano – o cansaço e a fome se juntavam aos dois ou ao grupo. Renatinho, que era vizinho do Jericó, e por vezes, integrava as excursões, em certa oportunidade, mostrou nas redondezas de uma sede de fazenda, onde era possível achar ninhos de galinha para cozinhar os ovos. Em sua casa, já que os seus pais não estavam; apenas o seu irmão mais novo – o Rodolfo, de 11 anos. Ao apanhar os ovos ele recomendava: “pega tudo não que é pra galinha não desanimá, sinão ela muda o ninho”. Ovos recolhidos e acomodados com capim dentro de uma das camisas rumavam para a cidade. Na hora do cozimento, enquanto Renatinho abanava as brasas e ajeitava lenha no fogão, dizia ser cinco minutos para cozimento, embora o Jericó dissesse ser três e o Rodolfo que providenciava a panela com água achava ser dez minutos: “mas cadê o relógio? Dêxa aí um tempo e tá bom! A gente isprimenta um daqui a pôco”. Prontos e servidos os ovos, era uma correria para alcançar o Renatinho e o Rodolfo que comiam três, enquanto os outros lutavam para descascar um. Depois de satisfeito o Renato ria muito, alisava a barriga e dava uma dica: “oia! É melhó pra discascá se tirá essa pelinha junto. Oia!!!” – Mostrava.
Quando a necessidade acometia longe das fazendas, Jericó, então, parava... pensava..., e resolvia fazer um saque em um devedor do seu pai. Este, atendia ao pedido sem maiores cuidados, sequer comunicava o fato ao credor. Quando o pai do Jericó se deu conta (da conta) foi um bafafá; porém, ninguém presenciou nem deu notícia do que ocorreu entre pai e filho no fechamento do balancete. Carlinhos, tadinho, era muito criança para ser responsabilizado – segundo a avó, dona Rosa – isso era coisa do Jericó – o contador.
Crianças soltas, procurando lenha para o fogão nas marcenarias ou no mato, realizando outras atividades para ganhar umas moedas, também tinham tempo para brincar. Em casa e nas ruas próximas: futebol com qualquer coisa chutável, estilingue, bola de gude (biloca), Biloquê, pião, carrinho de rolimã, bate-bate e esfinca. Andar de bicicleta era possível quando aparecia uma visita para os avós, ou algum tio de olho nas vizinhas – em uma das vezes, o Batista, tio do Carlinhos, que sempre aparecia, mandou chamar a Helen, uma das vizinhas. Só que o pai dela preferiu se apresentar primeiro e o Batista se lembrou de um compromisso urgente e teve que carregar a bicicleta nas costas até atravessar um matagal e sumir na outra rua –. Bem! Voltando às bicicletas, quando não eram emprestadas, Jericó e Carlinhos pegavam assim mesmo, escondido, para não causar preocupação desnecessária ao dono; e enquanto um dava umas voltas, o outro ficava de mutuca na porta, marcando o dono e os avós. Carlinhos, depois de muita luta, conseguiu aprender; e devido à estatura, era obrigado a passar a perna direita pela barra circular (Monark e Caloi – muito alta) e fazer malabarismo para poder pedalar. A falta de experiência e malícia não permitia o cuidado de manter os pedais paralelos ao chão; e, quando aparecia um desnível na rua, a transversalidade dos pedais com relação ao solo causava impacto e queda. Aí era hematomas nos pés, nas mãos e no joelho. A bicicleta tinha que ter o guidão desentortado por alguém maior. – prendia-se a roda dianteira entre as pernas e forçava-se o guidão para a posição correta. Pronto! Bicicleta devolvida intacta... às vezes com uns torrões de terra.
 No Grupo escolar, meninos brincavam de bandeirinha, pique-pega, estátua, e quando ocorria de ter bola, as meninas se juntavam aos meninos e jogavam queimada. As meninas, basicamente, ocupavam o recreio com cantigas de roda – Atirei o Pau no Gato; Carioca da Gema; O Cravo e a Rosa; A Canoa Virou; Aí, Eu Entrei na Roda; Se Essa Rua Fosse Minha; Cai, Cai Balão, Ciranda, Cirandinha, Escravos de Jó...
Às tardes, já pelo pôr do sol, na porta da Pensão Baiana, situada na rua Visconde de Porto Seguro – Jericó e Carlinhos corriam para se juntar a uma molecada que se amontoava para assistir “Gerônimo – o herói do sertão”. Em suas aventuras contra a Doutora Dorothéa e os encapuzados. Cabelo comprido com fita na testa, cavalos, tiros, socos, pontapés e os abraços de jiboia, Francisco Di Franco (Gerônimo) era o super-herói nacional. Carlinhos, também frequentava a casa do seu vizinho, onde tinha três garotos (pela ordem: Adolfo, Renan e Celso); uma mocinha (paixão do Jericó) e duas moças (Helen e Virgínia). Assistiam seriados como Tarzan (com o Ron Ely), Rim-Tim-Tim, Paladino, Daniel Boone, Túnel do tempo, Terra de gigantes, Viagem ao fundo do Mar, Jeannie é um gênio (com a lindoca Barbara Eden) e a Feiticeira. Quando a avó cochilava – “Sombras tenebrosas”.
Apesar de gostar de tais aventuras na TV, Carlinhos ficava aterrorizado quando via seu primo participar de brigas na rua com outra turma de garotos. Esse comportamento provocava nele uma espécie de cisma..., mas essa é outra história.

 


 
 
Conto publicado no livro "Contos Livres" - Abril de 2016