Rozelene
Furtado de Lima
Teresópolis
/ RJ
Acesso de risos
Humberto e Rutinha seguiam em viagem de lua de mel e relembravam
como se conheceram: - Ela saía do cinema e escorregou
em um daqueles saquinhos de batata frita. Caiu sentada, deu
um carrinho por trás em Humberto, que caiu em cima dela.
Foi tudo tão rápido que só tiveram tempo
de rir da situação. Ele levantou-se, ajudou-a
a se recompor, entreolharam-se e continuaram a rir. O acesso
de risos dos dois só parou quando ele convidou-a para
tomarem alguma coisa. Chegaram ao bar, pediram ao mesmo tempo:
- água, por favor. E as risadas recomeçaram. Ele
anotou o número do celular de Rutinha e cada um seguiu
seu caminho.
Rutinha não podia lembrar o fato, que caía na
gargalhada. Gargalhava no ônibus, na praça, no
banho, na fila do banco e às vezes a mãe dela
ia ao seu quarto ver o que estava acontecendo para tanto riso.
No trabalho tinha muita dificuldade para controlar os ataques
de risos.
Uma pessoa em posição de gargalhada ergue os braços
com as mãos em concha, abre a boca sorvendo as bem aventuranças
que vem de cima, depois se curva em posição de
reverência e assim sucessivamente. Uma luz magnética
é irradiada e circula cinturando numa alquimia ruidosa
e contagiante.
Dois dias depois Humberto ligou convidando Rutinha para dar
uma volta. Encontraram-se, conversaram e foram ao cinema. Tiveram
que sair no meio do filme porque os dois foram atingidos por
forte acesso de risadas.
Foi tanto riso que passado um ano o namoro chegou ao altar.
Ela trabalhava como auxiliar de enfermagem e ele era graduado
em Farmácia. Havia um entendimento perfeito entre os
dois, tudo terminava em risos.
Alugaram uma casinha num lugar lindo, com vista maravilhosa
para o poente. Um vale entre montanhas. Pássaros e muito
verde. Dormiam com o tamborilar da água do riacho e acordavam
com o cantar dos sabiás. A felicidade era tanta que escorria
pelos olhos, absorvida e saboreada na boca e depositada no coração.
O riso vivia dentro deles como pipoca que estoura em panela
tampada. Os dois eram o símbolo da alegria. A vizinhança
comentava o casalzinho apaixonado que morava na parte mais alta
do vale.
Eles faziam planos para terem um filho no próximo ano.
Nas terças-feiras, Rutinha fazia um plantão de
trinta horas. Saía de casa pela manhã e só
regressava na quarta-feira no final da tarde. Humberto chegava
sempre às vinte horas, trabalhava em uma grande drogaria
da cidade.
Uma colega de Rutinha pediu para trocar o dia do plantão,
porque iria viajar no final de semana e não chegaria
a tempo do trabalho no domingo.
Ela eventualmente folgou na terça-feira. Humberto saiu
para o trabalho e Rutinha teve vontade de ficar preguiçosamente
na cama. Um pássaro pousou no beiral da janela, cantou
um trinado alongado e voou. Ela sentiu uma forte emoção,
um aperto no coração e não teve vontade
de rir. Chorou muito. Pensou... - Se Humberto estivesse aqui
essa tristeza não teria coragem de entrar. Aguardava
ansiosa a chegada do companheiro.
Um dia sem acabamento, é aquele dia em que não
se riu não se dançou e nem se dedicou um tempo
para o amor.
À noite, quando o marido chegou, um jantarzinho esperava
à mesa. Tomaram um vinho e como começasse a chover
torrencialmente com relâmpagos e trovões, resolveram
desligar a televisão. Rutinha pegou o álbum de
casamento e foram rever as fotos. E inevitavelmente, muita gargalhada.
Emoções precisam ser externalizadas em explosões
de gritos, choros, danças, aplausos, risos, gargalhadas,
energias represadas tornam-se fortes e incontroláveis.
O som do riacho aumentou muito, repentinamente a luz elétrica
foi cortada, os relâmpagos iluminavam a casa. Era quase
meia-noite. Olharam pela janela da varanda, reinava a escuridão,
o vento assobiava, o riacho corria mais rápido do que
de costume fazendo um barulho ensurdecedor como estivesse fugindo
desvairado. Muito perto via-se riscos grandes no céu
e o estrondo dos trovões. A casa tremia. A luz voltou.
A casa continuava a tremer como que a pedir socorro. Abraçaram-se
fortemente, fizeram amor, amor louco, apaixonado. Por alguns
momentos desligaram-se da terra e atingiram a paz angelical.
A escuridão voltou. Sentiram medo.
Ela estendeu o braço e encontrou o álbum de fotos.
Ele alcançou o celular e ligou para os pais, que moravam
em outra cidade. Comentou que chovia forte e que eles tinham
acabado de vê-los nas fotos do casamento. Ouviu-se um
forte estouro, a ligação foi cortada.
Dois dias depois, uma equipe de resgate conseguiu chegar ao
local. Tudo estava destruído, paisagem desoladora, nenhuma
casa, só destroços, corpos espalhados entre pedras
enormes, árvores arrancadas pelas raízes e poucos
sinais de que algum dia ali tinha sido um bairro lindo. Uma
tragédia imensurável! O riacho tornou-se um corpulento
rio e serpenteava com dificuldade na paisagem tétrica.
Os pássaros calados. O silêncio soluçava
com alguns sobreviventes feridos.
Um pouco afastado, encontraram um casal vestido de lama, abraçadinhos
para sempre. A imagem dos dois formava um cálice em ofertório
à Mãe natureza e próximo a eles um álbum
enlameado de fotos irreconhecíveis.
Os dois pareciam sorrir.