Maria José Zanini Tauil
Rio de Janeiro / RJ

 

 

Outono da vida

 

           

Os filhos  de  Anair  cresceram e se foram. O marido já tinha feito a derradeira viagem. Viveram aos trancos e barrancos, mas a morte mostrou-lhe o quanto aquele homem foi importante em sua vida. Era o esteio, o ombro, o apoio, a força e o abrigo. A viuvez deixou-a desorientada. Nem entrar sozinha num elevador sabia. Como enfrentar bancos, assinar documentos, assumir responsabilidades? Cavour fazia tudo, até mesmo mercado e feira. Contar com os filhos?  Não... eles não tinham tempo.
Casa vazia e dor infinita na alma. Como administrar aquela solidão permanente? Nem  sequer uma grande amiga para jogar conversa fora. A filha não entendia aquele marasmo da mãe, seu isolamento, a falta de sociabilidade, o  viver solitário. Na verdade, ela alimentava uma grande amizade com uma companheira inseparável: a televisão. Eram todas as novelas, o Silvio Santos, o Gugu, o Raul Gil , a Hebe ... e todos que  entravam na sua sala através da telinha. Nada cultural, conteúdo de distração, entorpecimento da mente, inserção  nos dramalhões  da ficção.
Assim envelheceu: casa confortável, uma tv, uma independência ilusória e grande carência de afeto. Teve uma infância difícil. Os pais se separaram quando tinha nove anos. Cuidou de irmãos até casar.
Teve cinco filhos. Sempre acreditou que só se casou para fugir daquela vida. Os filhos já encontraram uma mãe impaciente. Tinha dificuldades em expressar o amor que nunca fez parte de sua árida vida. Frutos do carinho pouco revelado, esses filhos se distanciaram. As visitas eram   cada vez mais rápidas e escassas. Não havia mais os almoços de confraternização de final de ano, quando o pai fazia questão de todos os filhos à mesa.
Vieram os netos. Pouco apego. Amava-os, sim, desde que não lhe dessem trabalho. Acostumou-se demais a ser só, à falta de compromisso com alimentação, casa ou sobremesas preferidas de cada um. Em suas viagens frente à televisão, ia onde queria;  xingava os vilões e aplaudia os heróis, punha-se no lugar das mulheres bonitas e bem amadas.
O tempo passou e com ele chegaram  as limitações da idade, a necessidade de ter alguém para ampará-la. Foram anos presa ao leito e à cadeira de rodas. A boca silenciou: nem perguntas nem respostas. Era assim que estava acostumada. Os olhos fitavam o vazio e, talvez, por não enxergar bem, já não se prendia à tv.
Nessa altura, a filha já era  xerox da mãe. Os filhos se foram e para bem longe: circunstâncias de trabalho. Via-os só nas férias anuais. O ciclo se repetia,  então: outra casa vazia, solidão para ser administrada e  repartida com o marido e, por fim, a compreensão do que se ocultava  na alma de sua mãe e que nunca conseguiu entender. A televisão também passou a ser o seu cinema, seu teatro, seu único lazer, sua fuga e, principalmente, a única e fiel companheira.
Cíclico... tudo de novo.


(Um tributo à Anair Rodrigues Zanini)

 


 
 
Poema publicado no livro "Contos de Outono"- Edição Especial - Junho de 2017