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Fernando de Castro Dutra
Brasília / DF

O plantão

O balcão de uma delegacia pode ser o palco das histórias mais inusitadas já vividas por um ser humano, algumas trágicas, outras nem tanto; algumas apagadas da mente no decorrer do tempo, outras, jamais esquecidas; há aquelas, ainda, que deixam feridas que não cicatrizam. Esta é uma delas...
Aconteceu há muitos anos, quando eu ainda era um jovem policial e tirava plantão em um sábado. O dia fora agitado, com muitas diligências e ocorrências registradas, mas a noite prometia ser tranquila, pelo menos naquela hora, próximo à meia noite. Éramos quatro agentes no plantão, mais o delegado; porém, no momento, estávamos eu, Magda e Valter. Paulo e o Dr. Gomes haviam saído em investigação.
– Prontinho, senhora, sua ocorrência já está registrada.
– Obrigada, agente Lucas.
– Não há de que, senhora. – Eu havia acabado de registrar um acidente de trânsito e me preparava para tomar um café quando, de repente, um homem entrou assustado e gritando:
– Socorro! Por favor, me ajudem!
Estava pálido, mal vestido e com os olhos arregalados. Em razão de Magda e Valter encontrarem-se ocupados com outros registros, fui ao seu encontro.
– O que houve, senhor?
– Demônios! Demônios! Há dois demônios atrás de mim... Querem minha alma! – Dizia, apontando para fora.
Embora a situação parecesse cômica, a excentricidade do homem era visível e, para qualquer um que o tivesse visto naquele momento, diria que era um caso de delírio.
– Acalme-se, senhor – disse-lhe. – Demônios não existem. Sente-se, por favor.
– Existem, sim! E querem me levar! Por favor, me ajude...
– Acalme-se! Já disse! – Aumentei o tom de voz, apontando-lhe o acento. Mas ele se dirigiu à porta, recostando-se na mureta, observando o lado de fora, enquanto eu, finalmente, retirava-me do balcão para buscar meu café.
Quando retornei, o plantão já estava vazio. Magda tentava convencer aquele homem a ir embora, mas ele se recusava a deixar a porta da delegacia. Foi então, quando o relógio do desktop marcou exatamente meia-noite – lembro-me bem, pois Valter havia acabado de me perguntar as horas –, que uma forte rajada de vento soprou no interior da delegacia, fazendo aquele pobre homem correr e agachar-se na frente do balcão, como se fosse uma ovelha acuada por lobos. Em seguida, escutamos um som alto de batidas vagarosas de asas de algum animal voador, como se fossem de morcegos, porém, de mais intensidade. Imediatamente, transpus a portinhola que dava acesso ao plantão e corri para fechar a porta, mas era tarde demais. Duas criaturas horrendas e inimagináveis surgiram a minha frente, em meio à nuvem de fumaça; a porta se fechou sozinha em uma só batida.
As criaturas possuíam quase dois metros de altura. A cabeça era grande e cheia de chifres, com orelhas pontiagudas e peludas e olhos grandes e avermelhados. A boca parecia como a de um leão, grande, com dentes caninos avantajados e afiados. Rosnavam o tempo todo, deixando a saliva escorrer de suas bocas como se estivessem sedentos por algo. A pele de seus corpos era marrom, combinando em sobre-tom com os pelos. Tinham garras enormes que se juntavam com as asas, cujas envergaduras pareciam também ter chifres. Se fosse para assemelhar tais criaturas com algo já conhecido por mim, diria que eram enormes morcegos. Mas eu estava enganado...
– Os demônios! – Gritou o homem. – Vieram me buscar...
Antes que eu pudesse pensar em algo racional, fui esbofeteado por um deles que facilmente lançou-me para trás do balcão.
– Sebastião... – Um deles disse, com voz grave, dirigindo-se ao homem. – É hora de selarmos nosso pacto...
Ainda tentava me recuperar da agressão, quando começamos os tiros. Valter havia retirado uma espingarda do armário e descarregava nas criaturas; Magda, embora tivesse ficado inicialmente sem ação, também pegou sua arma e, do outro lado, atirava sem descanso. Instintivamente, retirei minha pistola do coldre e fiz o mesmo, enquanto o homem, Sebastião, mantinha-se deitado e encolhido. Aquele fora o tiroteio mais intenso que já presenciara em toda minha vida. As criaturas se debatiam, espirrando sangue para todos os lados. Em segundos, aquele plantão estava destruído e aquelas criaturas caídas no chão, juntamente com os estilhaços de vidro. Enfim, “não eram demônios”, pensei. Estava enganado... Com nossas armas descarregadas, as criaturas se reergueram mais furiosas ainda. Como magia, seus ferimentos se recompuseram instantaneamente. Uma delas ergueu suas garras e, sobrenaturalmente, nossas armas escaparam, para longe, de nossas mãos. A outra criatura se dirigiu a Valter e, agarrando-o pelo pescoço, ergueu-o e sussurrou:
– Valter... Sua hora ainda não chegou, lançando-o contra a parede.
Os dois, então, seguraram Sebastião, que suplicava para que os demônios não o levassem, mas não adiantou. Um círculo de fogo foi surgindo no espaço, como se fosse uma porta para outro mundo. Era possível ouvir gritos e choros desesperadores. Ao passarem pela espécie de portal, o círculo se fechou, deixando uma fumaça com forte odor de enxofre e amoníaco. Enquanto ajudava Valter a se levantar, Magda me encarava imóvel e com os olhos arregalados.
– Como vamos explicar isto – disse ela.
– Nem imagino – respondi. – Ninguém acreditará em uma só palavra do que dissermos.
Foi engraçado, mas quando disse aquilo, misteriosamente, as coisas começaram a voltar ao normal, como se assistíssemos a um filme e, de repente, retrocedêssemos a cena. Tudo se recompôs, a delegacia estava inteira novamente, como se o homem e aquelas criaturas nunca estivessem estado ali.
– Olhe! – disse Valter apontando o relógio do computador.
– Não é possível – respondi, espantado. Ao ver novamente as horas, só havia se passado um minuto desde o momento em que informei as horas para Valter, antes de tudo aquilo acontecer.
Mais tarde, antes dos outros voltarem, nós prometemos não revelar a ninguém o que havia ocorrido naquela noite.
No plantão seguinte, embora aquilo jamais tenha saído de nossas mentes, tentávamos seguir com nossas vidas, trabalhando normalmente...
– Pois, não, senhora? – Atendia uma mulher que acabara de entrar na delegacia.
– Gostaria de registrar o desaparecimento de meu filho.
– Sim... Qual o nome dele?
– Sebastião da Silva.
Vagarosamente, olhei para minha direita, direção em que estavam Magda e Valter. Um arrepio tomou conta de mim.
– A senhora tem uma fotografia dele? – Perguntei.
– Oh, sim. Aqui está... – Retirou-a de dentro da bolsa.
Ao pegar a fotografia, Magda e Valter se aproximaram... Ficamos sem palavras, pois sabíamos que aquele desaparecido... Jamais seria encontrado...

 

   
Publicado no livro "Contos Fantásticos" - Edição Especial - Maio de 2015