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Flavio Dias Semim
Presidente Prudente / SP

 

Fraqueza

Lembra-se? Anoitecia, era um sábado, de uma semana qualquer.
Afinal, não faz muito tempo. Naquele hipermercado lotado, carrinhos conduzidos por pessoas e que batiam uns nos outros, gente se acotovelando, se empurrando, naquele mesmo lugar, outra vez, eu te avistei.
Estavas, como sempre, linda, imponente e majestosa, fruto, pensava eu, da sua linhagem soviética. Mais do alto olhava-me disfarçadamente e com discrição, própria da sua altivez alicerçada na origem de uma autêntica czarina.
Esforçava-me para te ignorar, porém não conseguia. Lembrava-me de outras vezes, tempos em que juntos passávamos momentos agradáveis, quando chegava eu ao delírio após crises de grandes alegrias ou abatido por pequenas tristezas, já que o raciocínio corria solto sem poder me conter, sem poder ordenar as ideias, modificando meu comportamento sem sequer você se importar ou tentar me refrear.  Aliás, impedir-me é coisa que você nunca fez, sempre zombou dos meus excessos e de meus devaneios.
Meus pensamentos tomavam forma de viagem na tentativa inútil em te ignorar, pensava em fugir, mas não suportava a ideia e voltando a passos largos te agarrei com carinho, com ternura e com raiva de minha fraqueza diante de você. Nos meus braços, sem uma palavra sequer, sem oposição, sem mostras externas de alegria ou aversão, sem modificar o seu modo de ser, apenas se deixou levar...
Ansiosamente procurei sair daquele lugar e do meio daquela multidão que nos ignorava completamente. Foi tormentoso para eu encontrar o caminho da saída entre gôndolas lotadas de coisas e cercadas de gente, pois era imensa a minha ansiedade em tê-la e ficar somente contigo.  Apesar de estar exposta, a vista de todos, eu procurava te esconder para que as pessoas não a notassem e com isso não reprovassem a nossa parceria, desde que meus cabelos brancos, apesar de impor respeito, eram ao mesmo tempo motivos de olhares repreensivos, principalmente por senhoras aparentemente distintas que também aguardavam naquela lenta fila do caixa, aproveitando a oportunidade ociosa para observar e julgar o semelhante. Ouvi ou pareceu-me ouvir alguém mencionando Anastásia, seu nome e procurei ansiosamente identificar o atrevido, porém ninguém, ninguém mesmo nos notava. Eram apenas os ciúmes me dominando.
Enfim, do lado de fora, sob uma leve e fria chuva anunciando que outono se findava, vencemos o caminho percorrido entre muitos automóveis estacionados, carrinhos de compras vazios e gente em pequenas corridas.   Eu te apertava em uma de minhas mãos, numa sensação de quem não quer de nenhuma forma que se perca, fuja, caia, ou aconteça algo a não ser apenas estar comigo, junto a mim, ser inteiramente minha!
Armazenava forças necessárias para a noite que se emoldurava e a volta não tão curta, mas também não tão longa como me desenhava aquele momento, tornava-se interminável. Meus pensamentos vagavam com ansiedade, sintomaticamente loucos para estar a sós contigo, eis que em público ou mesmo com amigos eu era objeto de censuras e também chacotas, motivo esse de jamais te exibir aos outros, ficando somente para mim a satisfação de tê-la, desfrutando meus devaneios em toda a plenitude. 
O automóvel corria com o limpador de para-brisas ligado e a cada intervalo, a cada lapso de tempo em que durava cada movimento aparecia para mim, através do vidro, cenas como se projetada numa tela de cinema, num memorável filme, quando então eu antevia as ocasiões agradáveis que se aproximavam, prevendo a intensidade dos momentos vindouros.
Chegamos. Anjos fantasiosos nos receberam com suas trombetas propalando sons agradáveis dispersos pelos ares, em efusivas saudações aos chegados. O elevador trepidando, o apartamento desarrumado, atrevidamente despreparado para a visita não mereceu de você nenhuma reprovação, nenhum reparo, chegando eu em algum momento a ponderar que já eras acostumada com tais cenas!  Não, não podia pensar nisso, mas a verdade é que nada igual era desconhecido para você, eis que outros homens também se perdem na sua presença.  Mas, deixamos para lá este instante de inútil ciúme e entregamo-nos ao destino, ficando a sós. Minhas fantasias assistiam a revogação do apocalipse ditado pelo demônio, agora convertido, por minha alma possuída, em bom samaritano. Vamos para o que viemos, mas antes um reparador banho quente, já que o frio, não intenso, porém incômodo, tentava se apoderar totalmente de meu corpo e ele era, a partir dali, apenas seu, todo seu. 
Vibrei ao tê-la em minhas mãos e nos meus braços te apertei, sem sequer perceber e saber como te abrias para mim, momento então que te levei, finalmente, ao encontro de meus lábios!  O prazer daquele momento foi indescritível, do instante inicial ao final. Inegavelmente o primeiro é sempre o melhor e aquele foi o início de todos daquela noitada. Poucas vezes tive a coragem, mas então num relampejo de audácia balbuciei o seu nome: Anastásia. Em seguida, num momento desatinado te censurei, pois jamais, nunca você o fizera quanto ao meu. Ficou melhor assim, no silêncio, durante nosso silêncio, minha boca na sua boca, sugando inicialmente com ferocidade, com loucura, porém contida em seguida, e depois num ritmo lento, demorado, aproveitando a realidade, sem volúpia ou desespero. De vez em quando separávamo-nos por alguns momentos, quando então meus aforismos viajavam, entravam no túnel do tempo e chegavam até quando eu não te conhecia, apenas sabia da sua existência sem me preocupar e vivia muito bem sem você, pois tinha até alguém que me esperava. Uma família e amigos que me amavam sinceramente, o que não acontece mais por sua única culpa, exclusiva culpa, por ter se aproveitado de mim, de minha fraqueza, de minha vida e da minha maneira de não poder te largar, te abandonar. Pensava em desistir, porém agora era tarde demais.
Mas o tempo corre rápido e, rolando da cama, boca a boca, desvairadamente fomos nos encontrar no chão, derrubando alguns velhos móveis ou objetos que restavam naquele pequeno e imundo quarto. Gritos morriam em minha garganta antes de serem ouvidos.  O frenesi era intenso, cada vez maior até que chegamos ao fim.
A exaustão me fez adormecer, um sono nada calmo apesar do silêncio do ambiente e do suspiro da noite. Muito ao contrário, letargia cheia de pesadelos, monstros terríveis e bruxas montadas em suas vassouras com destino à lua minguante penetravam em meu cérebro através de meus olhos cerrados. Sombras davam formas a aparições enigmáticas tais quais as pintadas por Dali. Não sei quanto tempo levou para eu acordar, se foi algumas horas ou alguns dias, o que sei é que despertei abatido, arrasado, mal-humorado, porém lúcido, quando valentemente tomei a decisão constantemente adiada: fora a última vez! Não voltaria a te procurar, não voltaria a te encontrar, a te abraçar ou levá-la aos meus lábios. Retornaria para o que resta de minha vida, promessa já feita, anteriormente, por inúmeras vezes.  Mas, agora era real, sério, definitivo, tanto que vendo seu vulto repousando sobre o assoalho escurecido pela pouca luz restante, você caída, deitada vazada num canto entre duas paredes, te chutei, te xinguei com raiva, com desprezo, mas em seguida te apanhei e correndo te joguei pelo duto do lixo do prédio, aonde você foi transportada no dia seguinte ou sei lá quando, pois não mais me interessava o seu destino. 
Fiquei, assim, livre de você Anastásia, ó minha provocante, arrasadora, maldita garrafa de vodca.
Até quando?  Não sei...

 

   
Publicado no livro "Contos Fantásticos" - Edição Especial - Maio de 2015