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Rubens Alves Ferreira
Taguatinga / DF

 

Uma dúvida hiperbólica

Noite de domingo. Meu filho Manuel esta em seu quarto jogando, assistindo filmes e nas redes sociais (não necessariamente nessa ordem).  Ana faz relatórios de sua atividade profissional e eu, Sérgio da Cunha, e minha filha Karina discutimos assuntos diversos. Ela, como é de se esperar, com o “smartphone” na mão.
 No sábado passado houve o movimento/passeata da CUT e do MST em defesa do governo e no dia seguinte o mesmo aconteceu em repúdio ao mesmo governo. Comento com ela, relembrando Paulo Freire. O homem não quer se superar por causa da alienação que o acomete; e, sim, suplantar a opressão sofrida, para tornar-se opressor. Aqui, no Brasil, temos a cultura do “jeitinho”, da preguiça, do comodismo... A corrupção esta arraigada nos escrúpulos e na pele do brasileiro. Circula em suas veias.” Reforma política” com as mentes de que dispomos não resolve; precisamos de mais. Depois de tudo, vem gente se lamuriar do “status quo”. Acho que ao reclamar é preciso mostrar soluções. A educação é uma; porém, nem para ela, estamos preparados.
Ana terminou o serviço e pegou o “smartphone”. Daí, ficamos os dois, naquelas atividades típicas de casal nos dias de hoje: eu mudando os canais da tevê e ela com o celular.
Há três meses, eu havia começado um tratamento psiquiátrico. Na fase de adaptação comecei a tomar seis tipos de comprimidos. O antidepressivo foi trocado três vezes por que logo de início apresentou efeitos colaterais como inapetência sexual, falta de apetite, alterações do sono, dormência, zumbidos, perda de memória, dor de cabeça e outros. Nos pesadelos sou envolvido em situações sinistras em que me defendo. Por duas vezes caí da cama – na última – bati com a nuca de uma queda de 50 cm; e em outra ocasião, acertei a boca de Ana com um cruzado de esquerda. Olhei para ela e comentei sobre isso, ao que ela respondeu, sem desviar os olhos do celular:
_ Acho que você deve ligar para o médico e ver o que está acontecendo. Não acho normais os efeitos que essa medicação provoca.
_ Também não durmo; e, assim que começo a dormir acordo sobressaltado, sempre com os mesmos pesadelos, como uma estória seriada – disse olhando para ela que ri de um vídeo que acaba de receber no “whatsup”.
_ É horrível! Estou preso em algum lugar e quando perseguido não consigo me movimentar; então num último esforço consigo alçar voo, para logo retomar situação parecida.
_ Eu hemm?!
_ Pois é! – olho para ela; e ela para o (...) – geralmente quando vou cair de alguma altura, sinto um enorme vazio e frio no estômago e acordo aliviado; há acidentes tenebrosos de carros, caminhões, corpos, pessoas desesperadas e eu sempre escapando por pouco quando vou ser atingido.
_ ui! Vou largar isso aqui. Vamos dormir? – diz Ela, largando o celular, tirando os forros, ajeitando seu lado da cama e se dirigindo ao banheiro.
Fico sozinho no quarto, olhando as bobagens da tevê e refletindo enquanto ela não volta.
_ Falando em pesadelos – digo, quando ela retorna – você conhece aquela estória do Romãozinho?
_ Conheço. Meus avós contavam esses “causos” em roda de fogueira e fogão a lenha, com café quente no bule, biscoitos e os moleques segurando as pernas dos pais e avôs, com medo de ir dormir.
_ Tornou-se Lenda Urbana, não é? – perguntei.
_ Acho que sim. Respondeu ela, repuxando as cobertas para se agasalhar, apesar do bom clima nos primeiros dias do outono.
_ E aquele caso do defunto fujão?
_ Ah é! A ambulância que foi levar o corpo para perícia em Brasília se acidentou na volta no rio Melchior – que é poluído – dizem as línguas de plantão que o defunto saiu correndo e dizendo: “pôhh!!! De novo não?”. – Nunca mais foi encontrado. – concluiu e desatou a rir.
Nisso, nossa filha retornou ao quarto e ouviu as últimas palavras.
_ Credo! Vou para o meu quarto. – disse fazendo muxoxos! – boa noite!  - alias, vou dormir no sofá. Karina apagou a luz ao sair. Tomei os meus comprimidos e me acomodei para tentar dormir.

***
 Ana teve uns dois sobressaltos antes de pegar no sono; e, enfim, dormiu. Eu tive incômodos, como se o coração falhasse, espasmos no peito e chutes involuntários das pernas. Fiquei um tempão de bruços, de posição fetal, decúbito dorsal, enfim. Tempo depois, vi Ana se levantar e sair. Quando voltou, parecia estranha. Com um olhar cínico e misterioso. De repente, vejo um vulto passar pelo corredor. Um homem seminu, alto, jovem, esbelto, corpo bem delineado por músculos, cabelo castanho cortado curto e liso.  Sem entender nada, vou atrás e ele me recebe com socos e pontapés. Eu me defendo, mas sou mais fraco. Procuro algo para me defender, alcanço um estilete na estante e tento voltar para o quarto. Ele me segue e fica somente a porta entre nós. Ele força a entrada e eu procuro resistir com o ombro, apoiando um pé na cama. Tento cortar o seu rosto. Ele insiste cada vez mais agressivo. Eu me desespero, pois sinto o mal em seus olhos. Olho para Ana assustado e ela devolve com um sorriso maligno. Nesse turbilhão de incongruências, ainda acho tempo de me perguntar como que de conversas triviais surgiu tal situação. E por que os meninos não se manifestam, não aparecem.
Volto a mim num átimo e consigo feri-lo no olho direito. Ele grita como fosse fera e redobra a força. Tento atacar seu rosto novamente – minha mão e seu rosto ensanguentados... Já não tenho forças. Ele esta entrando. Vejo no seu olho bom, o desenho do meu fim. Minha mulher da gargalhadas e diz “vamos Assis”!
Enfim, retomo o estilete, seguro-o entre os dedos indicador e médio, passo o polegar por cima e apoio a outra extremidade na palma da mão. Assim que ele adentra o quarto dou uma estocada no seu pescoço. Ele me alcança a garganta. Uso a mão esquerda para me apoiar em seu corpo e enterro o estilete em sua barriga.
Acordo sobressaltado e desorientado... o rosto ardendo...  gritaria... a cama tomada de sangue.

Ao fechar dos olhos... Lá onde reside o oculto.

 

   
Publicado no livro "Contos Fantásticos" - Edição Especial - Maio de 2015