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José Faria Nunes
Caçu / GO

 

O sobrado do Barão

     Mais de hora na praça e nada de vento para empinar as pipas. Inútil correr de um lado para outro puxando linhas para fazer subirem as raias. Os papagaios não saem do chão.
Desanimados, com o sol a causticar-lhes rostos e braços, os garotos resolvem dar um tempo. Procuram a sombra do velho casarão da esquina, que fica de frente para a praça da velha matriz. Mal se agasalham chama-lhes a atenção o barulho vindo do interior do casarão, também chamado de “sobrado do barão”.
- Se não mora ninguém aqui, que barulho é esse?
- Pode tê gente lá dentro.
- Vamo dar uma espiada?
- Como? Tá fechado!
- A gente pula o portão e olha pela janela, uai.
- Tá certo.
Portão destrancado facilita a entrada. Encantam-se com a grandiosidade de tudo ali.
- Pena estar abandonado!
Sobem as escadarias que dão para a enorme varanda com vista panorâmica da praça.
Para assombro dos meninos, tudo ali limpinho de dar gosto. Um deles questiona:
- Olha, tudo limpinho! Como pode, se não mora ninguém aqui faz tempo?!
- Quem será que cuida disso?!
- Sei não! Será alma de outro mundo?!
- Tô começando a ficar com medo!
- Medo que nada! Vamo entrá!
Tentam a porta da frente. Trancada!
- Olha aquela janela! Parece só encostada.
Entram pela janela, fazendo escada com as mãos para cada um subir. O último não consegue.
Na praça, espia de longe a aventura dos colegas, que vasculham tudo. Sobem até o andar superior, onde ficam os quartos, também tudo arrumadinho.
Só não sobem ao sótão. Medo de morcegos.
Encabulados:
- Que mistério é esse?!
- Ocê num sabe? Dizem que o primeiro dono daqui matou a mulher e deixou ela no sótão! Deve ser a alma dela que cuida de tudo isso.
- É! Ela deve tá aqui, mas como é alma, a gente não vê.
- Cruz credo!
– Vamo embora! Olha como tô arrepiado! – Diz mostrando os braços.
Destrancam e abrem a porta, saem e deixam a porta só encostada. Descem a escadaria, deixam o portão aberto, param de novo, observam. Não veem sinal de entrada de carro, sinal de nada e de ninguém.
Outra observação é que só há limpeza dentro do casarão. Aquilo que um dia foi jardim está tudo sujo, folhas por todo lado, maior parte debaixo das árvores.
- Ocê viu que o quintal também tá sujo? Eu vi pela janela.
Enquanto caminham, agora esquecidos das pipas que ficam na entrada do casarão:
- O que vamos fazer?
- Procurar alguém!
- Quem?
- O delegado?
- O prefeito?
- O padre?
Concordam que o padre é a pessoa certa a quem recorrer. E vão para a velha matriz.
O padre também não tem explicação, mas conta-lhes o que já ouviu sobre o casarão ou sobrado do barão:
- Quem mandou construir o casarão foi um barão vindo para cá nos tempos do império. Ele implantou uma fazenda de café, com escravos e tudo de maior valia na época. Por mais de século o casarão foi a maior referência arquitetônica da cidade. Nos finais de semana o barão deixava a fazenda e vinha para a cidade. Conta-se que a própria esposa do Barão, que não pudera dar filho ao marido, teria estimulado e favorecido que ele se deitasse com a escrava que servia a baronesa com dedicação incomum na casa grande. Dessa relação entre barão e escrava nascera o único filho, um mulatinho, criado nos primeiros anos na casa grande. Depois foi continuar os estudos na capital do império, onde passou a ser chamado apenas Mulato. Ao saber que o Barão se enviuvara, Mulato retornou para a fazenda, onde passou a ajudar o pai em seus negócios. Coube a Mulato influenciar o Barão a alforriar seus escravos, que passaram a ser tratados como trabalhadores livres e remunerados. A alforria dos negros do Barão desagradou os coronéis e outros grandes proprietários de terras, que se uniram para neutralizar o impacto de Mulato na vida social da região. Assim pensavam evitar o seu crescimento que poderia levá-lo a uma cadeira de deputado na província ou até um posto elevado nas cortes do Império. Desconheciam eles que Mulato era desprovido de interesses políticos, exceto a causa da libertação dos escravos. Embora de pai abastado, sua origem materna o prendia a causas humanitárias. Com a morte do Barão, Mulato permaneceu na fazenda e fez do casarão da esquina um albergue para pessoas desprovidas de abrigo. Andarilhos, indigentes, índios e negros foragidos, todos que buscassem abrigo no Sobrado do Barão eram acolhidos. Por esse seu lado humanitário Mulato conquistara a admiração de muitos e a inimizade de tantos outros. Seu crescente prestigio incomodava os latifundiários. Daí deveria ser eliminado.E passaram à ação: arregimentaram um bando de jagunços para o feito. Cientes de que no final da semana Mulato estaria no casarão com seus protegidos, na calada da noite foram dar cabo à operação. Aquela noite o casarão estava com ocupação completa. Mulato estava com seus protegidos. Os jagunços já entraram batendo, chutando, espancando. Quem esboçasse reação era logo esfaqueado. A ordem era para “limpar” o sobrado. Mas sem tiros, para não chamarem a atenção das redondezas. Arma de fogo só de última hora, se houvesse extrema necessidade. Ao escutar o tropel Mulato certificar-se do que ocorria. Ao ouvir o grito de “cuidado, Mulato!”, o capaz que representava o fazendeiro líder dos insurgentes e comandava os jagunços desferiu-lhe uma punhalada no peito. Ao cair ainda indagou ao seu algoz: “por que faz isso comigo se só procuro fazer o bem?! Em resposta outra punhalada o calou para sempre. Daí só se via corpos caindo, crianças, velhos, doentes. Só se via sangue esguichando e escorrendo pelo casarão mal iluminado. Um rio vermelho a escorrer pelo assoalho. Enterraram os corpos em valas rasas no quintal do casarão na mesma noite da chacina. Como era comum muito barulho no local em finais de semana, ninguém da cidade desconfiou de nada. Até porque, além da casa da cadeia e da Câmara, o casarão era o único prédio do quarteirão. Apenas no dia seguinte se notou algo estranho, com o silêncio e nenhum movimento no casarão. E assim permaneceu até hoje. Ninguém se atreveu a residir no imóvel, tido como mal assombrado.
Os garotos, pasmos com a história que acabam de ouvir do padre, despedem com agradecimentos pela atenção saem, vão pegar suas pipas no casarão e caminham de volta para suas respectivas casas.
No casarão alguém desce do sótão e observa os meninos com suas pipas.
O vento sopra, mas eles agora nem ligam. Estão apressados para contarem a novidade em casa.

 

 

 

   
Publicado no livro "Contos Fantásticos" - Edição Especial - Maio de 2015