Alexandre Benício
Parnamirim / RN
Como andei de roda-gigante
Se assim posso dizer, o meu sonho sempre tem início com duas mãos assustadoramente desfiguradas que me atiram lá de cima, e caio num vazio escuro, vendo se distanciar dos meus olhos, uma enorme roda gigante em movimento. E ouço aquela música infernal, executada repetidamente, porém não consigo ver o rosto algoz, e tudo termina antes de chegar a um improvável chão.
E me vejo diante do parque de diversões fechado. No seu centro, a roda, destacando-se da paisagem mórbida, revelando um incomum brilho a luz noturna. E devo confessar que nunca andei de roda gigante.
Acredito que exista um motivo, que todos conhecem e compartilham, e eu, pelo que me lembro, esqueci. Pulo os portões acorrentados e no instante em que observava a magnífica panorâmica, ela se iluminou por completo em fachos de luz de esplendor e convite a diversão.
Me escondi, temendo que surgisse alguém, e tomado de susto vi que o colossal brinquedo agora também girava, subindo e descendo, como se houvessem pessoas a se divertirem em seus bancos.
Um lamento profundo, que aumentava de intensidade chegou a meus ouvidos, e diante de mim, num dos bancos que subiam e desciam, estava uma jovem mulher, a me observar através de atormentados e expressivos olhos.
Parecia adorar aquele passeio e me convidava a acompanhá-la, mas confuso com a repentina aparição, lhe afirmei que já me dava por satisfeito observar os outros se divertindo. O que deveria ter lhe dito era que tenho verdadeiro pavor, e que esse sentimento está relacionado a uma verdadeira fascinação pela majestosa máquina.
Naquele momento não percebia, mas agora sei, que não conseguia ver as partes externas do meu corpo. Nem braços, mãos e nem as pernas. Apenas enxergava tudo a minha volta, e tinha por vezes a pertubadora sensação que era tudo maior e mais opressivo e autoritário.
O brinquedo havia parado e a mulher desceu. A sua expressão triste se esvaneceu, e plena de ironia e perversidade contida, insistia para uma volta. Diante da minha firme recusa, ela avançou como um animal selvagem, sentou num banco e pela ordem de um comando invisível, a roda começou a girar novamente.
A mulher se divertia e me desafiava sempre a subir. Ao ver a roda girar mais e mais rápido, numa absurda rotação que ao meu ver, parecia contorcida entre as gargalhadas dela, me enchi de medo e de súbito, uma imagem de um rosto turvado tornou a meus olhos, alguém que se jogara para a morte de uma roda como aquela.
A panorâmica havia novamente parado e sentia que tinha que deixar aquele local, e então ela gritou que só depois que eu andasse no brinquedo. Me falou coisas que não compreendi e entre elas, tenho certeza, foi dito meu nome, embora não recordasse de ter o mencionado.
Olhei em volta na direção dos portões e não consegui encontrá-los. Voltei-me apavorado entre seus risos. Acuado, gritei descontrolado para que não mais pedisse, que jamais andaria naquele monte de ferro.
Apertei meus olhos diante de inúmeras letras em branco e preto, que surgiam diante de mim, se cruzando, se agrupando, me forçando a ler o texto que descrevia o ato extremo de uma louca que subira numa roda gigante com uma criança, e rodou e rodou com ela no colo, para depois a atirar de lá.
E era ela que estava ali agora, era ela, eu sei, se divertindo loucamente perversa. Relutante e embargado de pânico, e mesmo assim, sentindo uma entrega inevitável ao meu desejo de subir, sentei num dos bancos ao seu lado.
A roda começou a girar lentamente e ao balanço do banco, fechei os olhos como uma criança assustada. Uma imensa sensação de alívio me invadiu e senti seu trêmulo corpo junto ao meu. Estava bem, já não havia mais medo. Abri os olhos e ao meu lado estava uma coisa horrenda. Era o mesmo rosto, mas completamente destruído, com corte profundos e disformes. O sangue coagulado pendia nos cabelos parcialmente arrancados, vermes rodeavam as covas dos olhos, que estavam mortos, emoldurados por um terrível sorriso.
Aterrorizado, tentei me afastar. A mulher me empurrou, cai no vazio e fiquei pendurado pelos ferros. Aquela coisa ainda me observava fascinada, revelando uma boca desprovida de parte da língua e dos dentes.
As minhas mãos se molhavam, anunciando que estava escorregando. A aparição agora pisava em ambas as mãos. Olhei para baixo pensando em pular. Arfante, vi o banco um pouco abaixo. Me joguei no ar e novamente me vi pendurado e com muita dificuldade, consegui me sentar.
Acompanhando a rotação vertiginosa, olhei em direção a mulher. Ela se voltou até mim, se levantou e subiu no banco. E quando a roda atingiu o topo, se atirou, caindo desesperadamente até alcançar o chão.
Angustiado com a bizarra visão, me entreguei a um sôfrego lamento, misto de dor e revolta, por não puder perdoar, por não perdoá-la nunca, até me dar conta que estava num banco de uma roda gigante e estava sozinho.
Ela girava com alegria, chegava embaixo, em cima, e livre eu me divertia como a criança que era, sorrindo para as luzes que iluminavam a minha diversão.
E sei que quando chegarem os primeiros raios da manhã, ninguém poderá imaginar, ao ver meu pequeno corpo despedaçado no chão, de que maneira tão sublime, eu andei de roda gigante.
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