Primeira vez neste site? Então
[clique aqui]
para conhecer um pouco da CBJE
Antologias: atendimento@camarabrasileira.com
Produção de livros: cbje@globo.com
Contato por telefone
Antologias:
(21) 3393 2163
Produção de livros:
(21) 3547 2163
(21) 3186 7547

Alexandre Benício
Parnamirim / RN

 

Como andei de roda-gigante

Se assim posso dizer, o meu sonho sempre tem início com duas mãos assustadoramente desfiguradas que me atiram lá de cima, e caio num vazio escuro, vendo se distanciar dos meus olhos, uma enorme roda gigante em movimento. E  ouço aquela música  infernal, executada repetidamente, porém não consigo ver o rosto algoz, e tudo termina antes de chegar a um improvável chão.
E me vejo diante do parque de diversões fechado. No seu centro, a roda, destacando-se da paisagem mórbida, revelando um incomum brilho a luz noturna. E devo confessar que nunca andei de roda gigante.
Acredito que exista um motivo, que todos conhecem e compartilham, e eu, pelo que me lembro, esqueci. Pulo os portões acorrentados e no instante em que observava a magnífica panorâmica, ela se iluminou por completo em fachos de luz de esplendor e convite a diversão.
Me escondi, temendo que surgisse alguém, e tomado de susto vi que o colossal brinquedo agora também girava, subindo e descendo, como se houvessem pessoas a se divertirem em seus bancos.
Um lamento profundo, que aumentava de intensidade chegou a meus ouvidos, e diante de mim, num dos bancos que subiam e desciam, estava uma jovem mulher, a me observar através de atormentados e expressivos olhos.
Parecia adorar aquele passeio e me convidava a acompanhá-la, mas confuso com a repentina aparição, lhe afirmei que já me dava por satisfeito observar os outros se divertindo. O que deveria ter lhe dito era que tenho verdadeiro pavor, e que esse sentimento está relacionado a uma verdadeira fascinação pela majestosa máquina.
Naquele momento não percebia, mas agora sei, que não conseguia ver as partes externas do meu corpo. Nem braços, mãos e nem as pernas. Apenas enxergava tudo a minha volta, e tinha por vezes a pertubadora sensação que era tudo maior e mais opressivo e autoritário.
O brinquedo havia parado e a mulher desceu. A sua expressão triste se esvaneceu, e plena de ironia e perversidade contida, insistia para uma volta. Diante da minha firme recusa, ela avançou como um animal selvagem, sentou num banco e pela ordem de um comando invisível, a roda começou a girar novamente.
A mulher se divertia e me desafiava sempre a subir. Ao ver a roda girar mais e mais rápido, numa absurda rotação que ao meu ver, parecia contorcida entre as gargalhadas dela, me enchi de medo e de súbito, uma imagem de um rosto turvado tornou a meus olhos, alguém que se jogara para a morte de uma roda como aquela.
A panorâmica havia novamente parado e sentia que tinha que deixar aquele local, e então ela gritou que só depois que eu andasse no brinquedo. Me falou coisas que não compreendi e entre elas, tenho certeza, foi dito meu nome, embora não recordasse de ter o mencionado.
Olhei em volta na direção dos portões e não consegui encontrá-los. Voltei-me apavorado entre seus risos. Acuado, gritei descontrolado para que não mais pedisse, que jamais andaria naquele monte de ferro.
Apertei meus olhos diante de inúmeras letras em branco e preto, que surgiam diante de mim, se cruzando, se agrupando, me forçando a ler o texto que descrevia o ato extremo de uma louca que subira numa roda gigante com uma criança, e rodou e rodou com ela no colo, para depois a atirar de lá.
E era ela que estava ali agora, era ela, eu sei, se divertindo loucamente perversa. Relutante e embargado de pânico, e mesmo assim, sentindo uma entrega inevitável ao meu desejo de subir, sentei num dos bancos ao seu lado.
A roda começou a girar lentamente e ao balanço do banco, fechei os olhos como uma criança assustada. Uma imensa sensação de alívio me invadiu e senti seu trêmulo corpo junto ao meu. Estava bem, já não havia mais medo. Abri os olhos e ao meu lado estava uma coisa horrenda. Era o mesmo rosto, mas completamente destruído, com corte profundos e disformes. O sangue coagulado pendia nos cabelos parcialmente arrancados, vermes rodeavam as covas dos olhos, que estavam mortos, emoldurados por um terrível sorriso.
Aterrorizado, tentei me afastar. A mulher me empurrou, cai no vazio e fiquei pendurado pelos ferros. Aquela coisa ainda me observava fascinada, revelando uma boca desprovida de parte da língua e dos dentes.
As minhas mãos se molhavam, anunciando que estava escorregando. A aparição agora pisava em ambas as mãos. Olhei para baixo pensando em pular. Arfante, vi o banco um pouco abaixo. Me joguei no ar e novamente me vi pendurado e com muita dificuldade, consegui me sentar.
Acompanhando a rotação vertiginosa, olhei em direção a mulher. Ela se voltou até mim, se levantou e subiu no banco. E quando a roda atingiu o topo, se atirou, caindo desesperadamente até alcançar o chão.
Angustiado com a bizarra visão, me entreguei a um sôfrego lamento, misto de dor e revolta, por não puder perdoar, por não perdoá-la nunca, até me dar conta que estava num banco de uma roda gigante e estava sozinho.
Ela girava com alegria, chegava embaixo, em cima, e livre eu me divertia como a criança que era, sorrindo para as luzes que iluminavam a minha diversão.
E sei que quando chegarem os primeiros raios da manhã, ninguém poderá imaginar, ao ver meu pequeno corpo despedaçado no chão, de que maneira tão sublime, eu andei de roda gigante.


   
Publicado no livro "Contos Fantásticos" - Edição Especial - Maio de 2015