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Ana Rosa de Oliveira
Recanto das Emas / DF

 

Temo o reflexo do luar...

A rua é quase uma ladeira e no ponto mais alto fica minha casa, mesmo assim, de lá não se avista o movimento dos banhistas, turistas e moradores se confundem - todos querendo se divertir.
Os pescadores destoam do conjunto, na canoa ou de pé à beira da água, o anzol em punho, apenas a fisgada do peixe poderia tirá-los daquela concentração.
O condomínio é novo, não tem portaria ou lugar para guardar barcos e canoas, é tudo no improviso.
O rio corre lento e com a intensidade das ultimas chuvas de verão, as águas turvas escondem a profundidade e seus mistérios, mesmo assim há quem se aventure num passeio mais prolongado.
Fiquei ali ouvindo o barulho, planejando viajar no período que ainda restava das férias.
As tardes são muito quentes em qualquer estação e naquele dia não era diferente, ainda assim os barcos e canoas subiam e desciam a correnteza sob o sol escaldante.
O barco alaranjado parecia ter problemas, o barqueiro gesticulava muito em minha direção.
De repente percebi que era tarde, quase ninguém, apenas meia dúzia de pessoas distantes umas das outras.
Levantei enquanto a embarcação se aproximava e um homem desceu.
Nossa! Pensei comigo mesma, que criatura esquisita!
Tinha seis dedos em cada uma das mãos, e atrás dos calcanhares, uma deformação semelhante a pequeninas asas e os pés mais lindos que eu já vira em um homem!
Desviei o olhar para o rosto e ele sorriu ao mesmo tempo me estendeu a mão. Fingiu não perceber meu olhar indiscreto e após as apresentações se desculpou, pois longe me confundiu com outra pessoa e por isso me acenou ainda no rio.
O sorriso era encantador revelando pequenas linhas no canto externo dos olhos, indicando delicadamente as marcas do tempo.
O sol se punha deixando um rastro dourado no horizonte, espetáculo magnífico da natureza parecia brindar aquele encontro
Voltei a casa lembrando nossa conversa, ele já não parecia esquisito, não fosse pelos calcanhares, seis dedos não era uma coisa incomum.
No restante das férias esperei o Moises na beira do rio, entretanto ele apareceu apenas uma vez.
De volta ao trabalho a vida seguiu seu curso e os meses foram se passando sem qualquer novidade.
Tive um resfriado forte e alguns dias depois o diagnostico de pneumonia. Com um mês de licença medica resolvi ficar no sossego daquele lugar, era ideal para cuidar da minha saúde.
Nos primeiros dias não saí, precisava de sol, mas as manhãs eram frias e a tarde acabava por dormir.
De casa mesmo sem ver o que acontecia, podia ouvir o som da diversão – um violão cansado e uma cantiga de amor, o barulho parecia  sair do meu quintal.
Lá pelas dez horas da noite, ecoou uma musica triste, quase um lamento, era como uma lamina cortando o meu peito, dias e dias ouvindo aquilo, a vontade era levantar, sair, encontrar o autor daquilo e pedir que parasse com aquela agonia.
Uma tarde resolvi pescar e pelo barulho, a vizinhança tivera a mesma idéia.
Final de tarde e inicio de fim de semana, os melhores pontos já estavam ocupados. Cumprimentei os conhecidos e fui descendo a margem. Quando percebi já havia me afastado bastante, estava numa curva sem contato visual com as pessoas.
Ouvi o lamento e senti medo, um arrepio tomou conta do meu corpo inteiro.
A princípio não havia ninguém, apenas a musica. Quando vi o barco, logo soube quem cantava aquilo.
Meu Deus! Como pude esquecer aquela voz?
O barco demorou muito a subir, seu condutor parecia sem pressa, remava devagar. À medida que se aproximava meu coração batia tão forte e tão alto, dava a impressão que ia encobrir o som daquela canção sinistra.
Ao contrario do que esperava Moises não veio falar comigo, continuou subindo a correnteza até desaparecer.
Fiquei bastante decepcionada e antes de voltar para casa tentei descobrir algo a seu respeito entre os conhecidos, entretanto ninguém sabia nada a seu respeito. Temendo encontrá-lo novamente não sai nos dias seguintes, mas não podia evitar ouvir sua cantiga.
Era sábado, noite de lua cheia, bem agasalhada e com uma manta nas mãos resolvi participar do luau da dona Memé, era para angariar fundos para a creche onde ela prestava serviço voluntario.
Mal cheguei e sai para caminhar, respirar o ar fresco da noite que se iniciava.
Atraída pela musica fui andando, guiada pelo luar cheguei a uma pequena praia de areias escuras. Havia uma mesa de pedras, uma pequena fogueira e sentado a minha espera estava ele, sorridente e misterioso.
Comemos silenciosamente e dançamos uma musica que somente nós ouvíamos. Em seguida ele tomou-me pelas mãos e fomos caminhando rio adentro. Não senti frio ou medo, eu o segui confiante.
Fui encontrada ali na manha seguinte com a mesma roupa que fui à festa, esticada na areia a princípio parecendo morta. Foi um alvoroço, até se darem conta de que eu estava desacordada, levada a um hospital, fiquei assim por dias, até decretarem uma espécie de coma, pois não havia nada de anormal comigo.
Ao receber alta, o medico todo sorridente me entregou o receituário e algumas recomendações, segundo ele, para uma gravidez tranqüila, ao constatar a minha surpresa, perguntou se eu não havia percebido que estava grávida, respondi que não, então ele comentou que era incrível, pois já deveria estar com 12 semanas de gestação!
Não tinha nenhuma lembrança do luau. De qualquer modo uma gravidez assim, presumia um relacionamento de alguns meses antes daquela noite, e isso definitivamente não havia ocorrido.
Tive um lindo garotinho saudável e de cabelos negros.
O pediatra avisou que ele deveria ser submetido a uma pequena cirurgia, se eu concordasse antes de sairmos de alta ele faria o procedimento. Antecipou-se a minha pergunta, mostrou os seis dedinhos e os calcanhares da criança e foi dizendo: “mãe, é melhor resolver isso, assim sai do hospital livre desse problema, aliás, um problema de natureza estética”.
Arthur é uma criança adorável, está aprendendo a falar, de vez em quando murmura uma cantiga bem familiar, se for à noite me levanto devagarzinho para fechar a janela, temo o reflexo do luar...


   
Publicado no livro "Contos Fantásticos" - Edição Especial - Maio de 2015