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Paula Perin dos Santos
Juazeiro do Norte / CE

 

Diacho de Canoa

Uma homenagem a Guimarães Rosa

 

Todas as noites em que me deito, que o tempo está assim, céu aberto, brisa leve e o céu luzindo para mim, eu me lembro daquele dia infeliz em que meu marido me deixou: eu e meus três filhos. Era um homem tão bom, ordeiro, cumpridor de seus deveres, positivo. Num dia sem ver nem pra quê, mandou fazer para si um diacho de canoa. Era toda de pau vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, só cabia e mal o remador, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Eu jurei muito contra a ideia: pois que ele era homem agora de viver de pescarias e caçadas? Mas ele nada não dizia.
            Quando o diacho da canoa ficou pronto ele se despediu da gente, calado, com o chapéu. Eu, pálida de desespero, doida pra voar em cima dele, apenas mordi o beiço e bradei: “Cê vai, ocê fique, você nunca volte!”. Mas isso era da boca pra fora. Eu queria que ele ficasse, que cuidasse da gente, que visse os meninos crescerem. E ele nada não disse. Acenou para o filho nosso do meio, chamando ele. O menino me olhou meio com medo, desconfiado, mas mesmo assim foi ter com ele. O bichinho ainda pediu pra ir junto, mas ele só botou a bênção e se foi rio adentro. Sem levar nada, nem roupa, nem comida. Eu tive vontade de me jogar na água, arrebentar aquele diacho de canoa, trazer ele pra casa e dar uma pisa boa naquele desmiolado. Mas num sei nadar, ia era morrer afogada. Quem ia cuidar dos meus filhos?
            E pensar que ele deu de morar no meio do rio e não foi pra canto nenhum! Os vizinhos e os parentes deram de falar, de fazer reunião para conversar sobre o assunto: achavam que ele tinha pifado das ideias, outros diziam que era promessa, ou que talvez tivesse uma bicheira das brabas, ou que tinha ido embora e se arrependeu, mas num dava o braço a torcer. Ou que ainda tava com o cão no couro. Outros tiveram a maluquice de dizer que ele ficava a me espiar, e ia me matar se eu arranjasse homem. De tudo isso eu tinha muita vergonha, mas num dei muita bola pra o povo não. E o povo falava, e inventavam histórias para botar medo nas crianças.
            Eu até passei uns dias intrigada sobre como ele ia se virar com o de comer, já que ele nem desembarcava do outro lado, nem voltava pra casa. Um dia, o povo da vila resolveu fazer fogueiras na beira do rio, e fizeram umas rezas e chamaram por ele. E ele nem “to you”. De manhãzinha eu levantei e dei falta do meu menino. Então ele estava lá, no barranco, acenando. Depois eu fui lá, e vi que o bichinho tinha pegado rapadura, broa de milho e banana. Daí eu resolvi facilitar, deixava a comida lá como quem não quer nada. Eu não queria que o menino soubesse que eu sabia.
            Então mandei chamar meu irmão pra fazer os serviços de homem, coisa como cuidar da fazenda e dos negócios. Mandei também chamar um professor pra ensinar as crianças. Mandei chamar o padre também, pra ver se conseguia trazer meu marido pra casa. Não deu certo. O padre era mole demais. Mandei chamar dois tiras, pra ver se botavam medo naquele infeliz. Num valeu de nada. Nem chegaram perto. Até veio o povo do Fantástico, do Profissão Repórter, do Gugu... Que nada! Ele desaparecia com a canoa no brejão no meio do mato, que nem lancha, nem cristão nenhum, chegavam perto.
            Daí larguei de mão, fui tocar minha vida e cuidar dos meus filhos. Se acostumar, a gente num se acostuma não, mas na labuta do dia a dia a gente deixa de pensar besteira porque fica com a mente ocupada noutras coisas. As crianças foram crescendo, minha menina botou corpo, ficou moça, casou. Eu num quis festa. Ela ia entrar na igreja mais quem? Ia pensar no pai e a gente ia sofrer tudo de novo. E eu não queria ver ela sofrer. Quando ela teve menino, foi levar pro avô conhecer da deirada do rio. Era um dia tão bonito... Ela ergueu meu netinho, mostrando toda feliz: “Papai, óia o seu netinho”, o meu genro segurando o guarda-chuva. Mas ele num apareceu. Aí a gente se abraçou e choramos juntos: eu, minha filha e os meninos, tudo rapaz. E meu genro. Depois eu ainda chorei escondida de ver a tristeza dela.
            Minha filha foi-se embora bem pra longe daqui. Meu mais novo se foi também. Tão parecido com o pai, bonito que só ele, uma cabeleira bonita de se ver. O outro mora mais eu. Dá pra notar o quanto ele sente a falta do pai. Sei que ele ficou perdido depois que o pai se foi naquele diacho de canoa. Por ele tava mais ele lá, sofrendo daquele jeito. Mas no fundo ele num tem coragem não.
            De meu marido ninguém sabe mais notícia. Eu, às vezes, me pego sonhando que a gente ficou bem velhinho juntos, sentados na cadeira de balanço, contando histórias na beirada do rio pro netinho da gente. Fazendo fogueira no São João, fazendo repentes. Brigando com os vizinho mode a zuada dos meninos. E vou sonhando por aqui, arrependida às vezes, de não ter feito uma loucura. Me pensando se ele foi embora por causa de mim, sem saber ao certo o que eu fiz pra merecer essa desgraça. Eu bem que desejei mil vezes que ele tivesse me trocado por uma rapariga velha. Pelo menos eu não estaria sofrendo dessa angústia de não saber o porquê de ele ter ido embora naquele diacho de canoa.

 

 

 
 
Conto publicado no livro "Contos Fantásticos - Edição 2016" - Setembro de 2016