Primeira vez neste site? Então
[clique aqui]
para conhecer um pouco da CBJE
Antologias: atendimento@camarabrasileira.com
Produção de livros: cbje@globo.com
Contato por telefone
Antologias:
(21) 3393 2163
Produção de livros:
(21) 3547 2163
(21) 3186 7547

Giovana Neves
Iguape / SP

 

O colecionador

               

Parece que a cada vinte anos a vida se esforça para me surpreender. Com vinte anos de idade decidi que Maria Luísa seria a mulher da minha vida. Ontem comemoramos vinte anos de casados. Foi uma festa incrível que valeu cada  centena de reais que nela investi. O Buffet competiu com o salão e a decoração em qualidade, originalidade e atendimento. A elegância inebriou o lugar, saltos Chanel e sapatos Louis Vuilton enamoravam-se pisando o mesmo chão em que a dama condecorada M.L. valsou por horas, exuberante e deslumbrante.
Após nos despedirmos de todos os convidados, fomos para o resort. A euforia da comemoração passou para o nível da perversão, foi uma noite memorável.
Despertei pela manhã, incapaz de me mover ou de emitir algum som. Mudo e imóvel. Como médico, supus que as funções cerebrais do lobo frontal estavam intactas. Não foi difícil presumir. Sabia quem eu era, onde estava e com quem estava; só não entendia o porquê de estar nessa condição tão limitada. Considerei apoplexia, conhecida como acidente vascular cerebral, que atingiu regiões responsáveis por determinadas funções, como a visual, pois tudo que enxergava estava embaçado e demasiadamente maior que o tamanho natural, além de um tom avermelhado e amarelado que confundia ainda mais minha visão.
M.L., sentada sobre a cama, falando ao telefone, sequer olhou para mim. Levantou-se, veio em minha direção de maneira assustadora, circunstância que me deixou apavorado porque conseguia ver cada poro da sua mão de tamanho gigante, senti que ela seria o King Kong pegando Dwan, eu seria Dwan, claro. Fiquei ofegante, nem assim ela percebeu que eu estava ali, pegou sua bolsa e saiu em direção à porta. Foi aí que entendi a minha posição. Eu era parte integrante da sua bolsa Palladino, um componente insignificante, sem função aparente, porque se servisse para alguma coisa ela teria me visto. Estava incomodada. Eu, grudado naquela bolsa, temi que a atirasse na galeria da recepção, torci para que isso não acontecesse, poupando-me de uma lesão ou da morte.
Incomunicável, só com os meus pensamentos. Tentei processar o ocorrido enquanto M.L. falava ao telefone, o som não estava em sintonia com a minha audição, não conseguia ler seus lábios e olhar para a sua boca abrindo e fechando me dava medo. Recapitulei os episódios sucedidos na noite anterior, nada evidenciava uma hipótese que esclarecesse o estado em que eu me encontrava. Tentei chorar, nem disso fui capaz. A última vez que chorei foi quando meu filho Ártur nasceu, há cinco anos, eram lágrimas de alivio e satisfação.
A última cena que me lembro, antes de despertar e me tornar o que me tornei, foi a de fechar os olhos dizendo a M.L.: “Boa noite, querida! Eu te amo!”.
Dentro do carro, ainda acoplado à bolsa sobre o banco, percebi que estávamos voltando para casa. O motorista devia ter perguntado por mim e eu queria poder ter ouvido a resposta, talvez assim saberia o que sou. M.L. sempre foi distraída, não perceberia a minha presença jamais, mas a minha ausência não tenho dúvidas que percebeu.
Eu estava certo, chegamos em casa. Ártur e a mãe se abraçaram, queria ser um inseto para saber o que diziam. Será que sendo um inseto os compreenderia?
Nos dias que posteriores a bolsa ficou esquecida no armário, assim como eu. Via M.L. e meu filho apenas quando entravam para pegar algo no closet, foram pouquíssimas vezes. Comecei a duvidar que eu tenha existido antes desse incidente.
Algo estranho passou a ocorrer no meu corpo. Senti que poderia me movimentar lentamente, foi demais! Além disso, percebi pelinhos que se formaram por todos os lados. Uma exaltação me consumiu. Há dias estava imóvel, sem nenhum entusiasmo ou perspectiva, até que mobilidade e penugem encheram minha vida patética de satisfação. Satisfação que durou pouco. A arrumadeira entrou no quarto, aproximou-se da bolsa fazendo caretas como se visse um inseto vil, asqueroso e desprezível. Retirou-se e voltou com luvas de látex e guardanapos de papel. Apesar de parecer tocar-me com gentileza, seu toque era penetrante e torturante, seria enfim o meu fim.
Quando dei por mim estava no jardim. A arrumadeira, que nunca fiz questão de saber o nome, me pôs de maneira afável em um ambiente incontestavelmente mais agradável. Ao tocar com os pés na folhagem, senti gosto. Gosto de fome, vontade de me alimentar. Notei que pequenas asas também apareceram em meu corpo. Estavam úmidas, intuí que poderia voar quando elas estivessem secas. Asas rosa, interessante! Duas ou três noites se passaram e, ao raiar do dia, bati asas e voei. Algo sobrenatural, milagroso e fascinante. A vista, o panorama, o cenário que via do alto era espetacular! Podia viver o resto da minha vida desfrutando de tamanha sutileza e graciosidade.
Há dias não via M.L. e Ártur, encontrá-los me angustiava, pela ausência de reciprocidade e falta de comunicação. Mas hoje, quando Ártur surgiu no jardim, senti um desejo insuportável de ficar perto dele, diverti-lo de alguma forma. Ele vinha com algo que não pude identificar em sua mão. Ao me ver correu em minha direção sorrindo, como se descobrisse que eu era o seu pai. Fui voando em sua direção até ficarmos frente a frente. Então Ártur levantou seu puçá com um sorriso formoso e travesso, e me prendeu. Aproximo o seu rosto, cobrindo tudo que eu poderia ver, era só ele e eu. Encarando-me alegremente, sorrindo com olhos, lábios e dentes, disse: “Papai ficaria orgulhoso de mim. Você será o inseto voador mais incomum da coleção dele”.
M.L. veio com o éter. Conheço bem esse processo, certa vez eu disse para Ártur que só deveria fazê-lo com o auxílio de um adulto. O cheiro confundiu meus sentidos, logo eu seria mergulhado no pote contendo éter, depois iria para a secagem e seria eternizado, alfinetado na minha própria coleção de insetos.

 

 
 
Conto publicado no livro "Contos Fantásticos - Edição 2016" - Setembro de 2016