Conto publicado no livro "Contos do Outro Mundo" - Edição Especial - Janeiro de 2014

Beto Acioli
Recife / PE

Da vida à vida


Aos 92 anos de idade, viúva, mãe de três filhos, ainda lúcida, Dona Vera, deitada numa rede, na varanda duma pousada, na Praia de Pipa, no Rio Grande do Norte, rememora os tempos de juventude e faz um retrospecto da sua história:
Aos 16 anos, filha mais velha de mãe solteira, morando numa periferia denominada ”Bode”, bairro do Pina, em Recife, começara a trabalhar muito cedo, ajudando sua mãe que era catadora de mariscos e pescadora. Avida não era muito fácil pra Vera, que dividia seu tempo em trabalhar e frequentar a escola. Ainda lhe sobrava as tarefas domésticas além de cuidar dos quatro irmãos menores. Apesar das dificuldades que enfrentava, Vera era uma garota sonhadora, como as demais de sua idade, era bonita e vaidosa.
Vera era uma bela garota negra, muitíssimo simpática, de corpo bem desenhado, olhos negros e cabelos trançados. Aparentava ter um pouco mais de idade, não só devido ao corpo, mas também pela desenvoltura em falar, chamava atenção por onde passava. Seu olhar penetrante parecia ser magnético e encantava os rapazes de sua idade e homens mais velhos com quem ela falasse. Vera não sentia vergonha do que fazia nem da vida que levava, acreditava que tudo melhoraria num dia, até que, ao completar a maioridade, recebeu um convite para trabalhar numa agência de moda, iria ser modelo. Era tudo que ela sonhara ser. Queria conhecer gente nova, lugares novos, culturas diferentes e todo glamour dos estúdios e passarelas, tudo pra ela agora era novo e promissor, queria se dedicar na carreira de modelo e crescer. No primeiro ano Vera trabalhou muito, foram muitas campanhas publicitárias e eventos. Idas e vindas sempre era assediada por agentes e fotógrafos, mas nem ligava, fazia parte daquele meio. O dinheiro que ganhava mantinha a sua mãe, que já não mais precisava trabalhar catando mariscos no mangue, a se manter e também a pagar sua faculdade, fazia o curso de Administração de Empresas, porém, adiante, o destino havia lhe armado uma peça.
Depois de quase dois anos de trabalho, Vera, que há muito tempo recebia propostas para vender seu corpo e que sempre havia recusado, agora se sentia na necessidade de fazê-lo, as coisas haviam mudado para ela, sua ambição em crescer era maior que sua resistência e ali ela ingressava no difícil mundo da prostituição. No começo foi tudo muito difícil, mas Vera não demorou muito para aceitar essa condição, afinal as coisas fluíam melhor daquela forma, acreditava ela, porém, como tudo tem seu tempo, um dia Vera não servia mais para a agência e fora dispensada.
Sem querer mais voltar pra vida de privações que passara ajudando sua mãe em seu árduo trabalho, Vera decide continuar com que escolheu para ela e passa a frequentar o calçadão da Praia de Boa Viagem a fim de conquistar novos clientes, começava ali a fase mais difícil de sua vida. Tinha ainda muito medo de sair com homens desconhecidos e conhecia todos os perigos de sua profissão, mesmo assim teimava em continuar, pois pensava em dar um conforto melhor para sua mãe e sua família.
Por mais de seis anos, Vera, aos trancos e barrancos, ainda levava aquela vida, porém muitas coisas ruins teriam acontecido nesse ínterim, teria sido agredida algumas vezes, ficado sem receber o pagamento pelos seus serviços etc. A ideia já não era a mesma e ela já pensava em desistir daquela vida, afinal já havia se formado, até que num dia se deparou com um inglês que a contratava para um programa. Ele mal falava o português, mesmo assim conseguiam se entender. Ele era gentil e atencioso com Vera, nem parecia que estar diante de uma prostituta. Vera parecia encantada com tamanha consideração e carinho que aquele homem que a mal conhecia lhe prestava. Seu nome era John, era alto, simples e educado. Trabalhava como pedreiro, em Londres e, no inverno, sempre passava quase seis meses de férias no Brasil e nesse tempo, Vera e John se envolveram... Ela já nem procurava mais clientes, nem dava tempo... John a queria todos os dias, parecia ter se apaixonado, com ela não foi diferente, se sentia feliz e segura ao seu lado, mas sabia que logo suas férias acabariam e junto com elas seu sonho estancaria. John não demonstrava essa preocupação, mas estampava em seus olhos o fogo de uma paixão, isso era muito nítido.
Seis meses passados é chegada a hora da partida de John e para a surpresa de Vera, John a convida para ir com ele... Logo providencia os documentos e, depois de alguns dias eles partem. Seria mais uma peça que o destino preparava para Vera? Que garantias ela teria estando tão longe de suas origens? Mesmo com receio ela arriscou, já havia passado por muitas e uma a mais não iria fazer tanta diferença.
Passaram-se quase seis meses e o visto de Vera estava perto de expirar, John não pretendia passar novas férias no Brasil, pois teve gastos extras nos últimos seis meses, ele a mantinha de tudo, ainda ajudava a mandar dinheiro para a mãe dela e estava disposto a não largá-la tão cedo, os dois estavam bastante envolvidos e apaixonados, então decidem casar e resolver assim a permanência de Vera em Londres. Para ela parecia ser um sonho... Já nem mais tinha essa esperança antes de conhecê-lo.
E assim a vida seguiu para os dois, tiveram três filhos, Vera começou a estudar, aprendeu o idioma e conheceu outros países. Voltou muitas vezes ao Brasil e numa delas também se casaram aqui.
Certo dia, com sua mãe doente, Vera precisa voltar para o Brasil e passa um tempo maior para poder cuidar da sua mãe que falece após 3 meses e ela precisa permanecer aqui pra cuidar dos irmãos. John vem somente nas férias.
Sem querer ficar muito tempo longe de sua amada, John começa a planejar um negócio aqui no Brasil e dois anos depois, consegue montar uma pousada na Praia de Pipa/RN que em seguida vem para ficar de vez.
Por longos anos a pousada foi a fonte do sustento da família, criaram e formaram os filhos, viajaram de férias, etc.
John faleceu aos 55 anos, vítima de um câncer. Vera tocou a vida com os três filhos e até hoje, juntos, administram a pousada.


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