Luzineti Aparecida Nunes Espinha
Caraguatatuba / SP

 

 

A casa da mamãe 2

 

           

          À noite passada sonhei que voltava novamente à casa da mamãe. Estava meio nebuloso, não tenho bem certeza, mas penso ter ficado por algum tempo parada, diante do portão, estudando como transpô-lo.
         No meu sonho emiti alguns miados bem altos pensando ser ouvida por algum morador mais obstinado; não obtive resposta. Espiando com mais atenção por entre as grades e outros tantos miados mais contundentes cheguei à conclusão que a casa estava deserta.
          As paredes cinza e meio escorridas de tons terrosos emolduravam as janelas azuis todas fechadas numa atitude de infinda solidão, e no meu sonho, sem saber muito bem como explicar, transformei-me num felino de pequeno porte a me espremer por entre as grades e, de repente, metamorfoseada fui tomada de poderes sobrenaturais e transpus a barreira que se tornara gelatinosa, flexível, pastosa. ..
          Quando já do lado interno, observei que, no chão, os buracos se multiplicaram e me convidavam a tomar cuidado à medida que avançava. Mais estreito e descuidado, não era mais o caminho que eu tinha conhecido e que por tanto tempo eu cuidara. Incrédula,  perplexa comecei a entender, quando tive uma pata torcida e tragada por um tufo de capim que guardava um buraco, que a natureza estava tomando posse do que lhe pertencia e pouco a pouco numa brincadeira maldosa ia camuflando o caminho que no meu sonho transformava-se num labirinto. Ali, logo ali, estava a casa da mamãe que sumia e ressurgia entre o azul da janela e o cinza de nuvens escorridas em barro se escondendo na terra.
          O tempo fora vencido, perdeu-se entre os muros construídos sem simetria e bem marcados pelo vai e vem dos felinos. No sonho, hoje, ela era toda minha. Um salto e me apoderei do parapeito da janela e  num saudosismo pungente fiquei a espiar o interior da casa. Apesar do tempo que se perdeu, era como se a tivesse deixado na véspera, uma porta bateu lá dentro e o vento que deslocou fez tombar, sobre a mesa,  o vaso com as flores murchas e amarelas, e a cadeira de balanço num lamento comprido  embalava  um felino de olhos verdes que metodicamente despejava no ar, anéis de fumaça azulados pela luz coada pelo vidro da janela. No meu sonho cheio de encantamento eu juraria que a casa não era parte do cenário, um ser inanimado, mas uma personagem viva, que respirava, qual donzelas que se sentem incomodadas quando tem as saias ameaçadas pelo vento, a casa da mamãe cuidava das suas cortinas que balançavam, das suas paredes recobertas de armários, dos seus gatos que a disputavam-na palmo-a-palmo.
          Os sonhos são desejos recalcados e têm grande poder de nos trazer tudo que queremos; o quarto trairia a nossa presença, uma porta do armário estaria aberta e levaria ao banheiro com seus traços azuis decorando os azulejos. Na parede um espelho grande refletiria a marca da cabeça de quem se deitaria ali, no travesseiro, não mais que meia hora por volta do meio dia. E no corredor, Cat , nossa linda  Cat sem vida, sua calda  estirada sobre o tapete, imóvel, fria sem perceber nossos passos, sem ouvir nossos lamentos, sem consolar nossas dores, era dela essa tarefa. Uma sombra escura tragando tudo, nossos temores, nossos rancores, nossas mágoas sepultos.

          A casa resumira-se a um túmulo onde a vida só a alcança através dos sonhos. Fora deles, não me viriam pensamentos ruins quando em minhas insônias eu me lembrasse da casa da mamãe. Pensaria nela com o que de melhor ela me dera. Teria  agradáveis recordações da grande sibipiruna, generosa e acolhedora em sua sombra que testemunhara  silenciosamente  meus planos construídos no  desespero; do tamarineiro com seus frutos doces e azedos, dos brinquedos das crianças espalhados, dos gritos misturados aos miados pelo terreiro...Não sei como, mas eu sabia estar sonhando, achava-me na realidade a centenas de quilômetros dali, eu acordaria dentro de poucos minutos  ouvindo o som da água caindo na fonte, daria um suspiro, espreguiçaria, puxaria com força esse ar marinho, pesado, salgado, úmido e ao abrir os olhos ficaria admirada de ver brilhar um sol convidativo e teimoso. Correria ao jardim para apreciar branca de neve e sentir na pele a temperatura de 35 graus, mas a sensação térmica era  de no mínimo  uns cinco graus a mais.

 

 
 
Poema publicado no livro "Contos de Verão"- Edição Especial - Fevereiro de 2017