João Paulo Hergesel
Alumínio / SP

 

Boca de lobo

 

           

Saíamos da lanchonete entre falatórios e risadas, e então o vi. Devia ter uns 7 ou 8 anos e estava sentado descalço, com uma regata rasgada e um short sujo, sobre a boca de lobo. Não se importava com a água de esgoto que lhe molhava os pés antes de escorrer ao bueiro. Parei para prestar a atenção nele, mas ele continuava cabisbaixo, imóvel, como uma escultura de arte contemporânea.
– Que aconteceu? – Ouvi de algum lábio que não soube, a princípio, identificar de quem era. – Por que parou de repente?
A pergunta veio da Laura, que aparentemente não conseguia enxergar o menino ao nosso lado. Talvez tivesse algum problema oftalmológico hebiátrico. E fosse contagioso a ponto de ter se alastrado por todo o grupo, menos a mim porque sou imune. Ou o problema era com meus olhos, capazes de enxergar uma miragem.
– Nada, não. Mas que eu curti as luzes que você fez no cabelo, ah!, isso eu curti.
Fui embora convencida de que aquele oásis às avessas não existia. Mas passei o caminho até em casa me sentindo culpada. E se eu tivesse lhe oferecido um hambúrguer? Ou fritas? Ou simplesmente tivesse lhe perguntado o nome? Caí num sonho em que lobos me mordiam e mastigavam até eu me transformar em uma estatueta sem valor.
Obedecendo à minha compaixão instintiva, voltei ao local uma semana depois. Dessa vez, sozinha, sem doenças oculares para me constranger. Esperava ver novamente o garoto com os pés na sarjeta, mas não havia ninguém. Esperei um pouco. E mais um pouco. Passei a tarde toda sentada em frente à lanchonete, na esperança de sorrir para uma criança infeliz e poder, pelo menos, desejar-lhe boa tarde. Ninguém apareceu.
O dia seguinte foi marcado pela minha insistência. E o outro. E o outro. E de outro em outro, resolvi eu própria sentar-me na boca de lobo. Tirei os tênis e as meias, dobrei a barra do jeans e fiz da água morna do esgoto a minha pedicura. Sentia na sola o desconforto de um pequeno morador de rua e, quando estava me cansando desse sentimento insalubre, ouvi um “psiu”.
Ao levantar a cabeça, lá estava ele: o menino que, sem intenção nem ciência, mexia com as emoções alheias. Fitei seus olhos tristes, remelados no canto, mas não tive coragem para lhe sorrir ou desejar boa tarde. Queria muito perguntar como se chamava, onde estavam seus pais, se tinha irmãos, onde dormia...
Mas ele não precisou perguntar meu nome, nem outros detalhes da minha vida. Apenas colocou a mão no bolso de seu short surrado e tirou uma cédula amassada de cinco reais. Os dedos sujos de terra não relutaram em se aproximar de mim e entregar a nota.
Quis dizer que não queria, que era eu quem devia lhe dar algum benefício. Mas, antes que eu conseguisse processar o que acontecia naquele momento, ele repousou o dinheiro no meu colo e saiu brincando de se equilibrar pelo meio-fio, como um protagonista de curta-metragem artístico.

(Texto premiado no Concurso Literário Acrísio de Camargo)

 

 
 
Poema publicado no livro "Contos de Verão"- Edição Especial - Fevereiro de 2017