José Luiz da Luz
Ponta Grossa / PR

 

Ismália

 

           

          Meu nome é Afonso, queria que fosse Alphonsus por ser mais chique e nome de poeta famoso. Mas, é Afonso. Também sou poeta, mas de nome singelo.
          Tenho duas angústias. Estava acordado na madrugada, pela calada imaginei que eram duas horas. É mais doce sonhar acordado do que aqueles que sonham dormindo. Eu cismava, pois a torrente de sonhos e de fogo nos hormônios aos vinte anos de idade,tem segredos anelantes para quem sente, esta ânsia fez de mim um filósofo prematuro.
          O celular tocou. Odeio celulares. Sou jovem com a alma de um velho, prefiro o brilho dos olhos ao brilho de uma tela. “Vou com Ismália. Vem, quero me despedir.” Li a mensagem do meu primo e amigo Penseroso. Acautelei: “como esperar coerência do andrajo, que abeira os quarenta anos sem nunca ter tido um amor? Quase sempre se esquece de dizer o lugar dos encontros” Contudo nunca desencontramos, resumia-se a três pedras na orla da praia onde costumava ficar. A primeira chamava de pedra branca em frente de um templo religioso, o refúgio quando sua alma buscava os fluidos de paz. A segunda era negra em frente a um prostíbulo, o antro nos instantes de vacilo. A terceira era dourada sobre a relva, ficava quando queria paz e olhar para a torre de um farol abandonado. Embora para mim todas as pedras fossem iguais.
          Entre as tentativas de contato, pus-me a lembrar do seu estranho caso de amor. Revelara quando o salvei de morrer no mar. Pela forma que caíra do rochedo, diziam ser tentativa de suicídio. Quando tirei a areia de sua boca sussurrou: “Deixe-me enlouquecer, deixe-me sonhar, quero ir com meu amor no mar.” Depois retornou de um desmaio em silêncio e o hospital atendeu como simples caso de afogamento. Outro fato estranho foi quando disse ser perseguido por Satã, na mesma época em que uma jovem se apaixonou por ele, e para fugir dela tomava veneno aos poucos, todos disseram que morrera, mas na verdade mudou de cidade. Na vida, aos poucos me confidenciou sobre seu amor sobrenatural: um amor só possível aos poetas, aos santos ou aos loucos.
          Andei pela orla, a maresia era como suspiros das ondas escumadas, e meus olhos saltavam na ânsia de encontrá-lo bem. Era fácil saber seu estado de espírito pela pedra que escolheria. Pensei: “É ingrato, bastava dizer a pedra certa.” Logo considerei: “quem poderá ser estável quando a alma delira?" Naquele desvario não era Penseroso que escolhia as pedras, eram as pedras que escolhiam Penseroso.
          Consternei-me ao ver a primeira pedra vazia. Ainda na penumbra decifrei uma mensagem na areia que fizera com o dedo. Havia a metade de um coração seguido de umas palavras: “Vou com Ismália”. Não eram simples rabiscos, expressava dor.
          Esteve ali, mas mudou de estado de espírito, restava-me seguir.
          A segunda pedra estava triste como um túmulo! Também passara ali, porquanto achei a mesma mensagem da primeira pedra, contudo havia na areia dois sulcos de quem havia se ajoelhado. Pressenti que passou pela febre do libertino, mas sem molhar os lábios na taça da lascívia, e de joelho bradava perdão e jurava seu amor à Ismália.
          Dirigi-me à terceira pedra.  Não havia areia para escrever, mas havia deixado um bilhete. Estremeci. Era impossível ler na escuridão, mas lembrei de usar a luz do celular!
          Era um triste poema de amor. Desde que conheceu aquele poema quando adolescente no colégio, embebedou-se de amor e gozo. O poema do amor impossível, ao ponto de se chegar ao desvario. Parece que seu corpo desfalece e sua alma só tem um desejo — morrer! Chamei-o várias vezes sem resposta. A relva amassada foi a pista de que cambaleou em direção ao farol. Subi ofegante, encontrei Penseroso deitado no topo.
          - Boa noite, Penseroso. Passastes pelas três pedras para dormir aqui?
          - Estou sonhando antes de morrer...
          - Que tens? Estás ébrio?
          - Ébrio de amor e êxtase. Estou sonhando com minha amada, pura e virgem como os anjos. Minha Ismália inocente embebedou-me de amor!
          - Morrer? Por que tantas dores? - Penseroso suspirou profundamente antes de responder:
          - Sabes, Afonso, Deus cria duas almas gêmeas com um só coração, e quando elas nascem na terra o coração é dividido, e cada uma traz um pedaço. É por isso que nascemos com um vazio, um impulso desesperado pela busca da outra parte. Isso é amor. A atração que une o homem à mulher amada mesmo diante das diferenças do tempo e espaço. Uma vida sem amor não tem o menor sentido. O problema é que às vezes as almas se desencontram, uma nasce e a outra não, nascem em épocas distantes. É por isso que há pessoas solitárias e infelizes, pressentem que a alma gêmea não está na terra.   
          - Deliras por causa de um poema? Para com isso! Ismália é apenas um poema de Alphonsus Guimarães.
          - Não é apenas isso. Deixei-te o poema na terceira pedra para saberes que Ismália é minha alma gêmea, não era uma personagem, era real. Alphonsus Guimarães conheceu aquela garota desvairada de amor, além de poeta era vidente, e sabia que ela se jogou da torre porque seu amor não tinha nascido. Ela me procurava, hoje eu a procuro. Nascemos em épocas distantes. O espírito dela voltou e vaga no mar, ela me chama, me procura. Tu és Afonso, eu o atraí aqui para que depois do meu encontro com ela, componha a poesia do nosso amor.
          - Enganas! Alphonsus escreveu que o espírito de Ismália foi ao céu — e tirei do bolso o poema para lhe mostrar.
          - O que o mundo não sabe é que existe uma estrofe escondida, a que seria a última, ficou guardada nos arquivos do poeta. Eis a estrofe:
          “Mas com Deus não sucedeu,
          de seu amor encontrar.
          Sua alma fugiu do céu,
          sua alma voltou no mar.”
         Enquanto eu lia o poema ele se atirou sem que pudesse evitar. Desde então tenho duas angústias: compor um poema triste, e a dúvida se encontrarei minha alma gêmea. A torre estará sempre lá...

 

 

 
 
Poema publicado no livro "Contos de Verão"- Edição Especial - Fevereiro de 2017