Ediloy A. C. Ferraro
Da janela...
Desde de pequena se aninhava naquele canto, aconchegada com o negrinho, seu gato, parecendo viajar para além dos limites visíveis daquele janelão. Era ali o seu refúgio, onde observava as mudanças do tempo, o sol brando das manhãs aquecendo seu rosto, ou nas vespertinas horas, os arrebóis desenhando figuras nas nuvens, no ocaso do astro rei, ocultando-se no prenúncio das noites, onde estrelas despontavam no manto celeste. Ou ainda, no período chuvoso, as gotas sôfregas batendo nos vidros, levantando do solo ressequido a poeira do chão, olores próprios de água e de mato, sensíveis e agradáveis aos olfatos, coriscando o céu com raios magníficos e terríficos ao mesmo tempo. Os casamentos em domingos de festas, replicando os sinos da igreja matriz, os falatórios das mulheres, os senhores e seus cavalos e charretes, os pequenos no átrio a correrem em seus folguedos e gargalhadas. Como fora o seu consórcio com Ambrósio, homem bom, trabalhador, meio bronco mas fiel, e, como dizem, tudo que é bom morre logo, foi-se depois de quinze anos de harmoniosa convivência, não tendo filhos, dele restaram as lembranças e uma foto de casal em cima de uma cristaleira, além dos raros motivos para deixar sua casa, em visita ao cemitério...Como todos os romances naqueles sítios, conheceram-se em uma quermesse da igreja, olharam-se cumpliciados, as mãos toscas e calosas do agricultor segurando as suas, macias, de professora primária. Descobriram-se, sendo ela a sua primeira experiência como macho, e a dela como fêmea, quebraram todos os tabus entre as quatro paredes de suas intimidades, o que arrancava suspiros saudosos à viúva. Nem parecia que uma circunstância trivial na vida roceira levaria o companheiro, picado por uma cobra cascavel na lida com a terra, socorro tardio com o soro antiofídico. Os pais falecidos, sem irmãos, a deixaram habitante única naquele teto de tantas lembranças, nas paredes que rescendiam as memórias de seus ocupantes, em seus passos lentos a percorrer cada cômodo. Aposentada, entretinha-se na confecção de roupas de recém-nascidos das obras assistenciais da paróquia, tecendo mantas, gorros e outras indumentárias com suas agulhas de tricotar. Devota de Santa Rita de Cássia, desde que recebera um santinho com a figura da canonizada e lera sua história, ainda menina. Dedicava-se às novenas promovidas, principalmente as da via sacra, com suas quatorze estações de dores, onde o terço era rezado em contrição diante aos suplícios do Mártir. Por acaso viu-se detentora de uma faculdade, a de benzer, o que fazia com reservas temendo reprimendas do padre. Diante a um dos inúmeros afilhados, tiritando de febre, o segurou nos braços, e, sem saber o que fazer para minorar sua temperatura, orou. O certo é que o pequeno, já prostrado, aquietou-se, dormindo um sono suave e acordando bem. Bastou para o fato correr, de boca em boca, e passar a ser procurada por mães aflitas com seus rebentos enfermiços.
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Poema
publicado no livro "Contos de Verão"-
Edição Especial - Fevereiro de 2017 |
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