Gil Madureira
Linhares / ES

 

 

 

Funeral sem finado

 

           

      

       

Quinta-feira, 13 de abril de 1922.
Saiu no jornal. Página do obituário. Anúncio grande, de três colunas por quinze centímetros de altura, comuns quando o finado é autoridade ou pessoa importante.
“A Associação Brasileira de Professores Catedráticos de Física e Cosmologia e a Académie Internationale des Maîtres en Physique Avancée et Astronomie, de Paris, participam o falecimento do Insígne Mestre Abdias Deodato Paes de Castro, laureado pela Svenska Akademin för Universella Genier, da Suécia, e convida autoridades, artistas e a toda a sociedade brasileira para o sepultamento desta grande personalidade da Intelectualidade Mundial, amanhã, dia 14 de abril, às 11 horas, no Cemitério Agnóstico Setentrional Diógenes de Sínope, no Rio de Janeiro, saindo o féretro da sua modesta residência (conforme desejo, deixado por escrito) na Rua Ofélia de Andrade, nº 171, Lins de Vasconcellos.
Nota: As janelas da sala serão abertas para o público às 9 horas, e para as Autoridades, membros do Corpo Diplomático, Embaixadores e Artistas Consagrados, a porta principal será aberta às 8 horas e 30 minutos.

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Dia seguinte, já antes das 7, a Guarda Municipal e a Guarda de Honra do Presidente Epitácio Pessoa, e mais a Banda de Música do 1º Regimento de Obuses Adstringentes do Cruzeiro do Sul já estavam a postos para prestar as devidas homenagens ao Grande Brasileiro.
Na rua, e em toda a proximidade da Rua Ofélia Andrade, o movimento de gente era intenso. Estimava-se, mais ou menos, 80 mil pessoas. Registre-se, também, que todas as vedetes do Teatro Recreio estavam presentes, chorosas por trás dos seus leques franceses, e muito bem-vestidas (comentava-se, discretamente, que o insigne cientista era admirador, com todo o respeito, do Teatro rebolado).
Três fotógrafos – somente esses foram credenciados – estavam na porta de entrada prontos para registrar a presença da elite no velório. O féretro estava devidamente lacrado por ordem do representante do Ministério da Saúde, conforme decisão carimbada, assinada e tacheada na cabeceira do esquife.
A assim aconteceu. Tudo como foi devidamente organizado. Todos foram fotografados. Com as esposas ou com as amantes.

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Às 10h40min o féretro foi levado ao coche oficial do Distrito Federal que seguiu rumo ao cemitério que ninguém sabia ao certo onde ficava – “deve ficar ao lado do cemitério do Catumbi” - disse ao auxiliar de cocheiro. E o cortejo foi seguindo, pra onde, ninguém sabia. Nenhum parente, nenhuma autoridade, ninguém sabia de nada.
Só que lá pelas tantas, esconfiado, o secretário do Senador Fragoso cutucou o patrão: - Vamos sair daqui, Senador, isso não está me cheirando bem... o caixão está balançando muito, parece que está vazio... não tem defundo nenhum lá dentro.
- Ein?!
- Isso tudo foi um blefe!  
- Einnn???!!!

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Dia seguinte – 14 de abril – toca o telefone do gabinete do Senador:
- Senador, aqui é o repórter do jornal Folha da Manhã. Estamos produzindo uma matéria da cobertura do falso enterro do falso cientista, em que o senhor compareceu e até prestou sua homenagem. As suas fotos ficaram muito boas. Vamos publicá-las para alertar as pessoas que não devem ser tão ingênuas assim...  Matéria com fotos, em ¼ de página. Mas se o senhor quiser pode substituir essa matéria por outra a seu favor. O preço é o de quarto de página anunciado na nossa tabela. Interessa? Várias autoridades se interessaram. Afinal, este ano é ano de eleições, não é mesmo?

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Dia 15 de abril. O jornal Folha da Manhã chegou às bancas, pela primeira vez em sua história, com 114 páginas, sem fotos. Somente notícias da campanha.

 

 




Poema publicado no livro "Contos Livres" - Edição Especial - Agosto de 2020

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