Literatura de Cordel
Origem
e instituição do Cangaço
Tania Maria de Sousa Cardoso
Pedagoga e especializanda em Literatura Brasileira
Matéria
publicada no Diário do Nordeste em 29/05/2005
Segundo o Dicionário do Folclore Brasileiro (s.d.,
p. 68), de Câmara Cascudo, "Cangaço é a reunião
de objetos menores e confusos, utensílios das famílias humildes,
mobília de pobre e de escravos". Cangaço, pois, é
o conjunto de troços, tarecos, burundangas, cacarecos, cangaçada,
cangaçaria.
Outra definição que Cascudo (Id., ibid.)
dá para o termo cangaço é "conjunto de armas
que costuma conduzir os valentões". É, portanto, o
preparo, carrego, aviamento, parafernália do cangaceiro, inseparável
e característica; armas, munições, bornais, bisaco
com suprimentos, balas, alimentos secos, meizinhas tradicionais, uma muda
de roupa, etc.
Tomar o cangaço, viver no cangaço, andar
no cangaço, debaixo do cangaço, são expressões
vinculadas com a vida de bandoleiro, assaltador, profissional, ladrão
de mão armada, bandido, conforme registrou Cascudo (Id., p. 183):
Há
quatro coisas no mundo
Que alegram um cabra macho;
Dinheiro e moça bonita,
Cavalo estradeiro baixo
Clavinote e cartucheira;
Pra quem anda no cangaço
O cangaço surgiu numa região pobre, o Nordeste
semi-árido, cuja principal característica do quadro natural
é a existência de períodos secos, que desestruturam
a economia local, onde a concentração de terras nas mãos
de poucos ainda hoje se mantém rigidamente inflexível.
Não encontrando soluções para sobrevivência,
ao homem nordestino restava a pouca espera, crescia a apatia de sentimentos
ao observar a miséria à sua volta. Muitos levados ao desespero
tendiam a enveredar pelos caminhos da violência para escapar da
realidade em que o latifundiário - o patrão - lhe tirara
todos o suor, restando apenas revolta e por motivos inconscientes tornando-se
muitas vezes um cangaceiro.
O processo de formação do cangaço
deita raízes profundas no contexto sócio-histórico.
Por essa razão, a compreensão desse fenômeno exige
uma análise de alguns aspectos históricos do Brasil colonial,
no qual está a gênese desse fato sócio-cultural.
Como se sabe, o território brasileiro, principalmente
durante o segundo ciclo econômico - a cana de açúcar
-, foi ocupado por várias raças: branco, negro e índio.
A terra foi dividida em lotes, recebendo o nome de capitanias hereditárias.
Esse sistema não teve êxito total, embora algumas tenham
prosperado, mas a maioria fracassou. Os donatários não tinham
interesse e nem recurso para colonizarem seu quinhão. Doavam lotes
de terras, conhecidos por sesmarias, a importantes famílias do
reino ibérico, responsabilizando-se pela atual estrutura fundiária.
Nesse momento, já é patente a postura ambígua
da Igreja, que tinha diferenciados discursos para cada classe social,
gerando assim conflitos e ao mesmo tempo coesão de idéias
sobre a posse da terra. Os ensinamentos da igreja não conseguiram,
no entanto, abafar diversos movimentos no campo, principalmente quando
do surgimento de beatos e líderes cangaceiros.
Influenciados por uma religiosidade primitiva, muitas
vezes sincretizada, esses homens do povo, vestidos com a indumentária
que os caracterizava, protagonizaram revoltas célebres, como Canudos.
Nesse momento histórico, já há também
notícias da existência dos cangaceiros, que marcaram época
no imaginário popular, misturando barbárie e heroísmo
na mente do povo. Não se tratavam, porém, de bandos independentes,
já que estavam a serviço de mandatários políticos
locais, como informa Maria Isaura Pereira de Queiroz (1982, p. 27).
A existência de bandos independentes não
é mencionada senão raramente nos relatos, nas memórias,
na literatura, nos periódicos e nos demais documentos das diversas
épocas anteriores ao século XX. As referências ao
cangaço subordinado, ao contrário, são freqüentes
e numerosas, mostrando que esta era a forma habitual dos bandos dos períodos
colonial e imperial.
A organização dos bandos, portanto, mantém
um processo sistêmico de total submissão à classe
dominante. Sua materialização enquanto revolta se dará
efetivamente a partir da desarticulação das forças
produtivas, acirrada com as sucessivas catástrofes naturais.
Em 1876, o escritor Franklin Távora publica o romance
O Cabeleira, que conta a história do precursor do cangaço.
Pai e filho, de nomes Joaquim e José Gomes, juntamente com um comparsa
negro, conhecido por Teodósio, formam um bando de cangaceiros,
assombrando os sertões de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande
do Norte, com suas violências e maldades
A época que este cangaceiro atuou coincidiu com
o momento de grande calamidade pública, na forma de epidemia de
varíola e de uma grande seca começada em 1777. O pavor que
causara sobre a população ficou retratado em canções,
que as pessoas entoavam como forma de intimidar as crianças:
"Fecha
a porta gente
Cabeleira aí vem
Matando mulheres,
Meninos também.
O cangaço se constituía como uma saída
em um contexto de miséria profunda e atrocidades. Por isso, novos
nomes iam fazendo crescer o fenômeno, dentre os quais o de Lucas
da Feira. De raça negra, Lucas da Feira surgiu no sertão
baiano, na metade do século XIX. Era salteador, assassino, raptor
de várias donzelas, cujas façanhas foram retratadas na tradição
oral dos feirenses.
Nesse período, outros grupos de cangaceiros foram
formados. Entre esses novos grupos, se destaca o bando de João
Calangro, que agiu no sertão cearense, como destaca Pereira de
Queiroz (1982, p. 27).
Excelente exemplo foi o de João Calangro que na
região Sul do Ceará, o Cariri, durante a grande seca de
1877, organizou um bando e dominou aquela área. Em 1875, João
Calangro era apenas um capanga do grupo de Inocêncio Vermelho, bando
aliciado e sustentado pelo juiz municipal do município de Jardim,
chefe político local, com o objetivo de manter a ordem. O bando
de Inocêncio Vermelho era, pois, um bando subordinado a um poderoso
local. Assassinado Inocêncio em 1876, Calangro, que se gabava de
ter cometido 32 assassinatos sem que qualquer processo fosse intentado
contra ele, tornou-se seu sucessor. Com a seca de 1877 e as desordens
regionais que ela ocasionava - os bandos de retirantes invadindo e saqueando
povoados -, várias autoridades e chefes políticos reclamaram
o concurso de Calangro contra os ´grupos de malfazejos´, isto
é, dos esfomeados, miseráveis que procuravam não
morrer à míngua. O Cariri, rico oásis, era particularmente
visado pelos retirantes,diante dos quais fugiam os fazendeiros abastados
e as autoridades.
Outro cangaceiro independente que granjeou notoriedade
nessa época foi Jesuíno Brilhante, que se tornou conhecido
como ´O Cangaceiro romântico´, pois seus biógrafos
são unânimes em apontar sua retidão de caráter
como característica marcante.
Natural de Patu, estado do Rio Grande do Norte, o cangaceiro
assinava-se Alves de Mello Calado; o ´Brilhante´ foi em homenagem
a parentes cangaceiros do Sul do Ceará. Seu ingresso no cangaço
deveu-se a questões menores, motivadas pela inimizade entre sua
família e a inimiga dos Limão, que era protegida por poderosas
oligarquias paraibanas e potiguares. Depois do cangaceiro Brilhante, um
novo nome se associa ao cangaço: Antônio Silvino, cujo verdadeiro
nome era Manuel Batista de Morais.
Pernambucano, nascido na localidade de Afogados da Ingazeira,
Antônio Silvino entrou no bando de Silvino Aires para vingar-se
do assassino do seu pai, crime este cometido por inimigos políticos.
O nome Silvino foi uma forma de homenagear o antigo chefe. Após
a morte de Silvino Aires, assumiu a liderança do grupo. Tanto no
sertão como no agreste e até bem próximo do litoral,
assaltava fazendas, roubava, assassinava adversários políticos,
chantageava comerciantes ricos, poupava as mulheres de agressões
físicas e sexuais, tinha fama de bom ladrão, tornando-se
um mito.
O reinado de Antônio Silvino foi de 1896 a 1914,
terminando com a sua prisão em Taquaretinga, estado de Pernambuco.
Após cumprir pena, faleceu de morte natural na cidade de Campina
Grande, estado da Paraíba, no ano de 1944.
Após o reinado de Antônio Silvino, desponta
o de Sebastião Pereira e Silva, o comandante ´Sinhô´
Pereira. Natural de Serra Talhada, estado de Pernambuco, e descendente
do barão do Pajeú, seu período de atuação
foi de 1916 a 1922. Tornou-se cangaceiro devido a questão de família,
eliminando diversos membros dos Carvalhos, adversários do seu clã.
A pedido do padre Cícero, fugiu para Goiás.
E, cansado das guerrilhas, abandona o cangaço, entregando sua tropa
a Virgulino Ferreira, o ´Lampião´. Morreu na década
de 1970 na cidade de Patos, estado de Minas Gerais.
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