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Matheus Henrique Ramos Mendes
Monte Carmelo / MG

 

Puro ser, intenso ressoar...

Eu sou o ar. Eu sou o som das batidas de meus ancestrais. Eu sou o beija-flor que voa e descansa acima da mãe terra, em meio ao pai dos céus. Esta é a lenda de como o amor, um sentimento tão forte, me levou a olhar com mais piedade os seres dessa história.
Daniel era padre nas terras do sul, veio para os meus domínios para doutrinar os índios. Um homem sem fé que ao invés de viver com seus iguais, veio aqui para impor sua palavra branca de um latim nojento para convencer meus filhos de que seu Deus era o verdadeiro.
Veio com a conversa mansa, falando de salvação e amor, e que o reino Dele não é onde vivemos e sim quando se ascende de tom. Deus é aqui, é tudo o que vive e que um dia morre. Não posso deixar que uma mentira dessas possa contaminar meus filhos de boa fé. Como disse farei. Coloquei no coração desse falso xamã um veneno que nenhum homem pode resistir, lhe dei pela sua intromissão o amor.
Como se fosse por um êxtase, ele se apaixonou perdidamente por Aru. Como eram negros os cabelos e olhos da índia que defendia com todas as forças as faces do Poder, as manifestações na natureza e seu sagrado nome. Aru não queria se envolver com o branco, mas ele com calma e paciência ensinou sua linha, seus saberes. Em troca, ela lhe retribuiu com alguns ensinamentos e curas da floresta.
Ela sempre dizia que seu centro de força, um ancestral do passado que incorpora um tipo de animal, era o beija-flor. Eu sou o ar, sou as batidas dos meus ancestrais e que auxilia os corações dos meus protegidos. Sou o beija-flor que muda e se renova como o ar que invade a mata fria.
Para concretizar o amor dos dois um filho foi concebido nas margens do grande rio do norte. A criança seria uma menina que iluminaria a vida do padre sem fé. Mesmo com o calor da paixão exalando em meio à trilha que Aru e Daniel trilhavam O Mal, a parte obscura do Poder, queria que essa traição terminasse.
Em forma de graúna, ele foi até a tenda de Aru, quando a lua já iluminava a noite, para fazer seu pedido. Ainda no mundo do Ser da areia, O Mal começou a falar:
- Aru, você não tinha o direito de se envolver com o homem branco, ele mentiu, matou nossos irmãos e deve sofrer a perda. Mas a escolha é sua.
- Não me separe do meu amor, é ele que me deu Nã, que já pouco virá a esse mundo.
- Aru, você deve escolher. Tem até o nascimento da pequena para tomar sua decisão. Se não escolher o levo comigo.
E assim, a graúna se desfez como fumaça e acordou Aru do pesadelo.
Aterrorizada pela ideia de perder seu amor, Aru rezou para seus entes pedindo que o castigo fosse desfeito. Pediu a mim que sou seu centro de poder, mas não poderia intrometer na maldição de outro Ser, além do mais não precisaria escolher, pois o branco não fazia parte de seu mundo, não deveria ficar com ela.
Os dias foram passando, e o dia do nascimento de Nã estava próximo. A índia não queria contar a maldição para o seu pálido amado, pois sabia que ele não acreditaria. Somente disse que dentro de três dias e três noites a luz dos céus viria em forma de menina.
Mas Nã não queria esperar, as contrações já estavam por acontecer e o único que estava presente até o momento era eu. Como pássaro, fui até sua cabeça para e lhe dei alento, e baixinho disse em seus ouvidos:
- Logo à noite, a graúna perversa vem para dar o seu rito final. Somente posso interferir na vida da pequena queserá agraciada com a delicadeza e a natureza de meu poder. –
E assim se fez. No momento que as palavras foram ditas, Aru se acalmou, lágrimas escorreram dos negros olhos. Ela tinha feito sua escolha. A lua já banhava o grande rio do norte quando o Mal planou nas terras onde a descendente de Iracema dava a luz. Sua dor foi intensa, mas sabia o que deveria fazer.
Lentamente, passo a passo, o Mal veio de encontro com a índia. Via com alegria o seu penar. E sorrateiramente disse:
-Aru, você já fez sua escolha? Quero uma resposta.
Um grito, fraco e baixo veio da pequena Nã que agora nasceu com a inocência e beleza de meu poder. Aru pegou a menina nos braços, toda suja de sangue. Ela olhou para filha e pode ver todo o amor que transbordava em luzes. Tinha os traços do pai, mas os ralos cabelos e olhos negros eram os mesmos dos seus. Teve de sozinha cortar o cordão que as ligava. Viu que Nã estava morrendo, não poderia deixar que sua luz de vida padecesse sozinha.
A lua, deusa da noite e dos seres que vivem nela se apiedou da pequena menina que não resistiria por muito mais que uma noite. Deu a ela um pouco de sua luz que transparecia em seus cabelos, agora alvos como a noturna deusa do luar.
- Me leve perversa graúna, mas poupe minha filha e meu branco xamã das terras do sul, deixe-me vê-lo apenas por mais uma vez.
- Não terá nada além de sua morte.
Não poderia intervir. Mas seus olhos, obscuros e temerosos me deram a certeza que precisava para tomar minha decisão. Fui à cabana de Daniel e o chamei até o local do parto. Correndo e desesperado, ele foi ao encontro de Aru, que fenecia com a filha dos braços. Ela teve tempo somente para dizer:
- Meu amor, você me deu o presente mais lindo do mundo...  Eu o amo e não tenho palavras para expressar o que sinto por você e nossa Nã... Prometa-me que cuidará dela seguindo minhas crenças...
- Eu prometo, mas não vai morrer, não hoje, não pode me deixar.
Ela segurou seu braço com força, o sujando com o seu sangue, fracamente disse:
- Diga suas palavras e poderei ir em paz...
Não havia mais expressão no rosto de Aru, ela se foi junto com o pássaro maldito. Daniel lhe deu um beijo nos lábios com as lágrimas encharcando o rosto. Pegou Nã no colo e já sabia o que dizer.
- *Et Deus unum sumus. **Divinitatem in circuitu nostro sunt.
Uma luz emanou de Nã iluminando a noite como a lua. Ela, mesmo pequena, olhou para mim e pude saber o que viria acontecer. Ela será minha protegida. Ela é filha do ar e da lua. Ela é a batida de seus ancestrais. Ela será a protetora desses matagais.

   
Publicado no livro "Contos de Outono" - Edição Especial - Junho de 2015