Willian Augusto Pereira
Fortaleza / CE
Um conto da vida
Ainda era cedo antes da reunião começar. Chovia naquela manhã de novembro. A galeria do colégio estava com cartazes sobre o dia da consciência negra. Um cartaz criativo estampava: “Zumbi vive, e você sobreviverá?”. Andei calmamente em direção ao auditório e esbarrei-me em uma belo jardim. Senti a natureza com sua singela e delicada aroma. Olhei para uma flor que me cortejou e pensei: essa flor vai alimentar as paixões dos emanorados. Quanto a mim ficará apenas a lembrança daquelas pétalas vermelhas e aroma de acácia, sublime. Ouvi um toque de tambores. O tambor é o elo com o passado africano, imaginei, com ele se comunica, se dança e transmite mensagens sagradas. Cheguei, enfim, no auditório. Um pequeno grupo me recepcionou e me levou para dentro.
Eu havia sido convidado para dar uma palestra no colégio do meu filho mais novo. Ao chegar no auditório me espantei com a quantidade de gente a minha espera, ou ansiosa pelo tema da palestra. Um rapazote se aproxima e indaga:
- É você que vai falar? Mas esse tema é muito complexo, Voce não acha?
- Pelo menos é o que todo mundo diz.
- O que eu acho - assegurou o jovem - é que o Brasil é um país onde se vive em harmonia com todos, sem guerras declaradas.
E sem que eu notasse, escuto uma voz feminina próximo a um armário, mexendo em uma aparelho parecido com um videocassete, e fala em voz alta: - O Estado brasileiro optou em ser um organismo institucional onde não se discute a questão étnico-racial, por entender que existe no país uma democracia racial. Tal posicionamento, maquinado, planejado e estruturado se desenvolveu e consolidou ao longo dos séculos. O resultado é que o país construiu um racismo camuflado, sitil. Uma discriminação invisível, onde negros e índios são sumariamente violentados em seus direitos, mortos, eliminados por não estar nos padrões étnicos raciais pautados. E que só beneficia os povos de pele clara, branca, especialmente os descendentes europeus, e punindo com atos arbitrários outras etnias. E acrescenta a gorota atenta a nossa conversa informal: - Cria-se a ideologia do embranquecimento, alimenta-se a ideologia da invisibilidade e padroniza, no Brasil , através de Gilberto Freire a partir da sua “Casa grande e senzala” a ideologia da miscigenação, do pardo, do mulato. Surge o povo brasileiro de Darcy Ribeiro. Aquele do cabelo espichado, parecido um abestado, sendo negro querendo ser branco.
O rapazinho quis intervir com gestos, mas ela o atropela: - Um povo sem consciência negra, apático, submisso, convencido, atrelado a conceitos fundamentalistas e moralistas. Aquele com uma consciência mágica, onde tudo é bom e belo, o que não reclama de nada. Esse é pacífico e calmo e gosta de tudo, principalmente de futebol, escuta Roberto Carlos, assiste aos domingos pela manhã a fórmula 1 e a tarde o Faustão, na Globo, e adora uma birita e um banho de mar. Um outro menino de cabelos avermelhados e crespos que estava próximo a mocinha interveio: - Mas como o negro pode ser ele mesmo desse jeito? Como construir uma consciência próxima a mim mesmo, sem ajuda? Como posso ser negro e me orgulhar disso? A garota prossegue e tenta ajudar: - Ter consciência de que é afrodescendente ajuda a levar a vida com mais suavidade. Ignorar essa possibilidade é baixar a cabeça e ser levado, manipulado, condicionado e engolido por essa ideologia eurocêntrica perversa e discriminatória. Nesse caso você se encontra com uma realidade distorcida, mas real, acontecendo aos seus pés, na sua vida.
Portanto, carece refletir continuamente e exaustivamente sobre essa possibilidade real que é encenado e posta para que você engula e tente viver.
E, aí ela afirma com uma convicção que me deixou extasiado: - Mas, você pode, sim, visualizar um cenário étnico-social possível a partir do visualizado e lincado no desejado. O cenário étnico desejado deve ter informações mínimas, como: quem sou eu, de onde descendo? que povo é esse? quais seus pontos fortes e fracos? Ser negro é ser diferente, ser gente é ser diferente, e é essa diferença que se soma tornando-se unidade. Na teoria Cartesiana o número um (1) representa positivo, aceso, ligado, e o zero (0), representa negativo, apagado, desligado. É um conceito binário, lógico, como bem explicita Heráclito de Éfeso: “o mundo, dizia Heráclito, é um fluxo perpétuo onde nada permanece idêntico a si mesmo, mas tudo se transforma no seu contrário. A luta é a harmonia dos contrários, responsável pela ordem racional do universo”. Sim , não, quente-frio. Utilizado muito bem na eletrônica digital. A unidade, em um contexto étnico social, pode ser entendida como algo positivo em todos os aspectos, desde que sua construção seja pautada em infinitas partes, forças, crenças, conceitos, atributos, aportes e convicções. Não dar para se chegar a uma unidade, por exemplo: em pardo ou mulato, pois, esse termo está diluído socialmente. Ser pardo é não ter identidade étnica nenhuma, nem é branco, nem negro. O pardo não acrescenta ao branco, assim não é igual a ele. Ele está mais para o negro. Pois, os iguais acrescentam, não somam, se diluem, chegam até saturar, prejudicando um processo natural de uma unidade. A unidade é caracterizada pela soma das diversidades. Ser diferente conta para a dialética do todo. Nesse sentido o que conta é a infinidade de variedades do ser para que se possa formar o círculo. As partes, cada uma conta, e elas somam para se ter um círculo completo. As etnias só são ricas se conseguirem apreender uma com as outras. Misturar-se sem se diluir, tornar-se unidade na diversidade.
E eu fiquei só aprendendo o que pensava que ia ensinar. A palestra foi comunicativa e rica e a turma foi mesmo participativa. Saí dali muito feliz. E ao me deparar com o jardim novamente, observei que aquela rosa já havia sido extraída. Mas amanhã nascerá outra e mais outra tão bela quanto aquela que me tocou um instante. E parei e pensei: Teremos, sim um Brasil diferente.
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