Marina Moreno Leite Gentile
São Paulo / SP
O álbum de fotografia
Era década de 1970, finalmente a jovem Samares conseguira comprar uma máquina fotográfica Kodak. Sentiu-se poderosa. Mas a aquisição, naquela época, além da necessidade de adquirir pilhas, também era necessário ir até uma loja e comprar os rolos de filmes, que podiam ser de 12, 24 ou mais poses. Estes filmes vinham dentro de um tubo redondo, protegidos por uma tampa. Para abri-lo era necessário muito cuidado, preferencialmente em um quarto escuro. Depois tinha que encaixar o filme em algo pontudo, da máquina, depois virar para comprovar se realmente estava preso direito e enrolar um pouco.
Quando chegava o momento dos cliques, era necessário habilidade pois, se fizesse algo errado, as fotos sairiam danificadas. Mas isto somente era descoberto depois de revelá-las. Alguns fotógrafos amadores estragavam tudo ou quase.
Na revelação tinha outro processo, a parte. Para isto seguia-se até uma loja especializada. O lojista exigia o pagamento antecipado, de pelo menos de 30%, para garantia do retorno do cliente. Era determinado alguns dias para retorno, na loja. Às vezes não cumpriam o prazo e isto gerava mais ansiedade para ver as tais fotos. A curiosidade fazia parte da emoção e em geral as expectativas eram compensadas, mesmo que o operador da máquina fosse inábil.
Na hora de abrir o envelope das fotos, geralmente havia alguma decepção. Era comum olhos vermelhos, imagens desfocadas, bocas muito abertas, olhos arregalados, etc. Contudo isto, o prazer de clicar fotos era gratificante.
Bem antes de adquirir a máquina fotográfica, Samares presenciara a visita de um fotógrafo na casa de uma vizinha, executando um trabalho bem interessante, então decidiu fazer o mesmo. A sua máquina tinha uma alça, para pendurar, mas ela preferiu carregar em uma bolsa. Assim ficava mais protegida de olhos maldosos. Então avistou uma casa, tomou coragem, bateu palma, em seguida uma jovem abriu a janela, perguntou o que desejava. Samares disse que estava realizando um trabalho fotográfico especial, com crianças, mas que ninguém seria obrigado a adquirir. Era uma experiência inédita naquela área. Aquela jovem não tinha e nem poderia adquirir uma câmara para fotografar os filhos, então apressadamente se dirigiu até o portão, para permitir a entrada da fotógrafa.
Com comportamento frenético, sorridente, a jovem chamou, aos gritos, dois nomes de meninos. Eles apareceram correndo, estavam brincando, mas ao perceberem a fotógrafa e seu equipamento, demonstraram muita disposição. Em seguida pousaram para os cliques, cada um teve a sua vez. Um deles pediu para tirar uma foto com a sua bola, foi atendido. Entre as fotos, um menino de cócoras, com uma mãozinha apoiando a cabeça. A jovem mãe assistia a tudo, atenta. Foram vinte fotos. Terminado o trabalho, a fotógrafa partiu para outras casas, na redondeza.
Dali a duas semanas, eis que a fotógrafa retorna. Bateu palmas defronte ao portão, no primeiro local que realizara a primeira produção fotográfica, imediatamente foi reconhecida. Samares adentrou no cômodo da cozinha, sentou-se, abriu uma bolsa grande, tirou um álbum revestido, tipo camurça. Que beleza e perfeição. A jovem mãe, os meninos e duas visitas que ali estavam ficaram encantadas com as fotos, especialmente com a apresentação externa do álbum.
Para a fotógrafa chegara o momento delicado de descobrir se tinham interesse em adquiri-lo. Além de deixa-los encantados, era necessário vender o trabalho realizado. A mãe dos garotinhos ficara feliz e amargurada ao mesmo tempo. Não podia comprar o álbum, mesmo que em diversas parcelas. Os olhos da mãe ficaram marejados, o semblante se transformou, dando lugar à decepção. As crianças ficaram atentas a conversa, com olhos arregalados, amuadas num canto.
Samares também ficou decepcionada, pois sentira o drama. Eram muito pobres. Apesar do prazer, a fotógrafa tinha que concretizar a venda. Teve o desejo de dar aquele álbum, mas as outras famílias vizinhas ficariam sabendo. A opção foi falar para a jovem mãe que o álbum ficaria guardado e, se um dia tivesse condição de adquirir, poderia procura-la. A jovem mãe ficou silenciosa ao ver o álbum sendo colocado na bolsa. Abriu o portão para a fotógrafa, visualizando-a adentrar em outra casa e, naquela noite, não conseguiu dormir direito, pensando nas fotos. Era como se tivesse perdido uma parte dos filhos.
Ao longo de um ano, a fotógrafa adquiriu boa experiência, vendeu diversos álbuns, fez cursos, adquiriu equipamento mais sofisticado, com lentes especiais, etc. Mas apesar da realização, tinha a pendência do álbum feito com sua primeira visita. Então resolveu retornar ao mesmo local, para doar as fotos dos dois meninos, mas quando chegou na rua deles, a família havia mudado para endereço desconhecido, depois de uma dramática enchente. Perguntou para um, para outro e nada de localizar a família.
Passaram-se algumas décadas e as lembranças daquela jovem mãe, triste por não ter adquirido o álbum, continua recorrente. As máquinas fotográficas daquele tempo se tornaram arcaicas, foram aperfeiçoadas. As fotos são coloridas e digitais. Apenas profissionais revelam fotos branco e preto. Houve avanço enorme no modo de registrar pessoas, lugares. Quando as máquinas digitais apareceram, eram caras e passaram a ser o sonho de consumo, mas rapidamente os celulares tomaram conta do mercado. São práticos para clicar, filmar, além do óbvio que é falar e receber.
Quase meio século após aquela visita, celular que clica fotos é comum para a maioria das pessoas, por isto a Samares acredita que aqueles meninos estejam clicando por ai, postando no Facebook, no Instagram, etc. E quem sabe aquela jovem mãe seja uma vovó... Vovó daquelas que clicam os netos, em todas as poses possíveis. Muitos outonos, outros tempos!
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