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Silvio Ruiz Paradiso
Maringá / PR

 

O Jogo de Bicho

 

Remexendo os ovos cor de rosa que boiavam numa mistura de água e vinagre, Sérgio ia colocando as coisas nos lugares em seu boteco, como se lá algo pudesse ficar mais belo se mudasse de lugar. O bar minúsculo conseguia abrigar uma velha mesa de sinuca, que outrora bambeava devido a uma perna mal colocada. Faltavam-lhe as bolas vermelha e branca. Atrás do balcão, uma prateleira enfileirava várias garrafas de bebidas, das mais coloridas e antigas, cujas de cachaças eram em maior número. Uma cabeça de boi enfeitava o bar, o que não ofuscava, no canto superior direito, um pequeno altar, que de tão empoeirado, só se percebia o quadrinho de Nossa Senhora Aparecida.
Mas Sérgio há muito tempo se esquecera de seus santos. Reclamava sempre que podia da sua atual situação: solteiro e endividado. Ao menos, se tivesse uma companheira, poderia por nela a culpa das dívidas em jogos de azar.
Morava no fundo do bar, era um cômodo e cozinha, afinal não podia ter muito luxo, foi o preço a pagar quando resolveu dividir o espaço da casa para abrir o botequim.
Com ele morava a irmã Rosa, costureira que passava dias e dias sem sair de casa, tentando através de sua velha máquina de costura dar conta de suas encomendas.
Sérgio era natural de Sergipe – um homem de meia idade, sobrancelhas grossas, nariz pequeno, e um bigode escuro que se assemelhava com o pente que deixava sempre no bolso da camisa amarela. Tal camisa era considerada por ele como o “uniforme” do seu trabalho. Rosa não sabia por que o irmão levava sempre o pente consigo, já que tinha apenas cabelos dos lados da cabeça e alguns fios longos ao meio, era certo que, às vezes, ‘penteava’ estes fios para trás.
Chegou do Nordeste com 25 anos, trazendo uma grande mala marrom e várias garrafas de cajuína. A bebida fez sucesso e foi o estopim para a ideia de abrir o bar, que vive do álcool, da sinuca e do bingo aos domingos. Contudo, foi de Rosa a ideia de vender pães e leite para os moradores da vilinha. Mas nada estava indo bem, e a grana cada vez mais escassa. Tentava através do jogo inventado pelo barão João Batista Drummond, arrecadar algum dinheiro grosso.
Lá estava, todo o santo dia, atrás do balcão riscando números numa folha de papel - 25, 26, 07, 27 – rabiscava-os. E recomeçava - 24, 25, 08.  Sérgio estava querendo jogar no bicho, seu maior vício. Queria porque queria sair daquela vida - Ah, mas se eu acerto 500 cruzeiros numa milhar!!! Estou rico! E lá ia, tentando formar casais de bicho para formar uma milhar: Cabra com cavalo...1106...não não...melhor Jacaré com avestruz 1501, pensava enquanto batia o lápis no balcão. Lá no fundo, Rosa, gritava em minuto a minutos algumas sugestões: Cobra e Veado! Acho uma boa dupla.
 Tão logo descobrisse um bom número, iria à banca do S. Armando apostar todo seu pé de meia. Sérgio largou os papéis e pegou a vassoura e começou a varrer, enquanto mentalmente formava bizarros casais do reino animal. Sérgio varria o bar quando uma sombra atravessou o chão, e ao virar-se viu que era o amigo Orlando que, mancando, puxava uma cadeira.
- Dia Sérgio!
- Bom dia, Compadre. Caiu da cama?
- É, eu acordei cedo pra poder ir no postinho marcar consulta. É artrite, sei lá.
- Vixe Maria!
- Ah sei lá! Só sei que quero uma branquinha ai.
Sérgio foi logo pegando dois pequenos copos. Abriu uma garrafa sem rótulo e despejou a bebida nos copinhos, oferecendo ao amigo. Orlando bicava a bebida como um peru e contava a Sérgio que as coisas estavam feias em casa.
Sérgio logo pensou em Odília, deixando escapar um sorriso de lado. Voltando a pensar no jogo de bicho, perdeu o início do lamento do amigo Orlando:
-  ... e além do cano, a cachorra fez a gente gastar uma nota de veterinário e remédio. E aí, caso piorem as coisas, vou ter que vender a Kombi.
- Ah não Orlandão, a Kombi não! Sério mesmo?
- É, eu sei. Mas, veja, eu to sem dinheiro pra colocar gasolina, ainda mais com o Geisel subindo o preço. E outra, mesmo que eu não vendesse o carro, pra onde iríamos com ele?
-  Cinema, um restaurante, sei lá.
- Quê? Tá loco? – levantando as duas mãos –    Estamos quase comendo a cachorra
Ambos riram e um minuto de silêncio se fez entre os dois
- Orlando, qual a placa da Kombi? Perguntou, na possibilidade de achar uma boa milhar.
- Sabe que eu não sei. Não sou bom em guardar números, apenas mágoas. Sérgio então percebeu que o assunto que iria começar ali era sério.
- Sérgio, meu amigo, na verdade tô assim cabisbaixo, não pelo dinheiro, cano, cachorra ou kombi. Mas, acho que sou corno.
O dono do boteco levantou a sobrancelha, coçou o bigode que parecia uma asa de anu e resmungou:
- Traído? Pela Odília?
- Sim. Acho que minha Odília está me traindo com alguém.
- Por que a dúvida? – Questionava o amigo, enquanto saia detrás do balcão e terminava de varrer as guimbas de cigarro para fora do bar.
Orlando com os olhos brilhantes e úmidos relembrava a história da noite anterior.
- Ontem, eu e a Odília estávamos dormindo profundamente, e de repente, lá pelas quatro da manhã escutamos ruídos fora do quarto, parecia alguém batendo no portão. A Odília se sobressaltou da cama, totalmente assustada, segurando os peitos, e olhou pra mim gritando.
- Aaaaiiii Virgem Santíssima, foge, foge.... deve ser meu marido!
 Foi muito rápido, e eu na gritaria, levantei de sopetão, assustadíssimo também e só de cueca, pulei com tudo pela janela do quarto. Quando comecei a voltar em mim, eu olhei pra cima e disse, Ei, peraí... SUA DESGRAÇADA, SEU MARIDO SOU EU!!!!
Sérgio tomado de uma epifania, largou a vassoura e saiu correndo para a banca de Seu Armando, deixando o amigo Orlando sentado, sozinho e com cara de choro.
Ofegante e suado, chegou à banca de jogos, tomou fôlego e ordenou:
- Armando, faça aí uma milhar. Aposto 500 cruzeiros no 2125. ‘Boi’ e ‘Vaca’ na cabeça!!!

********

Às 18 horas daquele dia, o resultado da Federal anunciava, que Sérgio e sua irmã Rosa são os mais novos milionários da cidade. Deu Boi e Vaca na cabeça!

 

 

 
 
Conto publicado no livro "Contos do Vigário e outras Picaretices" - Julho de 2016