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Carlos Eugênio Sombra Moreira
Russas / CE

 

O ocaso

Os bombeiros cercam a área para evitar maior aproximação dos curiosos. As pessoas que passam pela avenida central aglomeram-se para acompanhar a inusitada cena, engrossando a fileira dos curiosos que permanecem de olhos fixos para o alto, no intuito de não perder nenhum detalhe do espetáculo da vida real. Algumas pessoas apressadas ignoram o ocorrido, enquanto outras param e pedem a Deus, numa demonstração de fé, que aquele ato impensado acabe logo e, da melhor forma possível.
A grande metrópole passa por um momento incomum. No alto de um edifício – no vigésimo andar – uma jovem está prestes a desistir da vida. Ela traja um vestido longo, tem cabelos cacheados, rosto afilado, olhos verdes e pele bronzeada. Seu propósito é entregar-se a fraqueza humana, desistir de enfrentar os problemas que lhe afligem, regando suas últimas forças na concretização de um ato insano. Sua beleza parece não ser suficiente para atiçar a vontade de viver. Debruça-se no parapeito do apartamento, como se estivesse calculando o instante final de seus últimos momentos.
O corpo de bombeiros sobe no topo do prédio, na tentativa de conter a suicida. Um psicólogo é convocado pelo chefe de polícia para intervir na situação, que toma rumo imprevisível. Um pastor, que passa casualmente pela rua, é solicitado pela equipe de resgate. Enquanto um cético, que acompanha a cena desde o inicio, desafia o religioso: “Onde está o teu Deus? Por que você não a livra da morte, usando os poderes divinos que afirma ter?” O pastor ignora as blasfêmias contra o Criador e acompanha o policial nessa missão árdua.
A mediação das autoridades e do chefe religioso estressa ainda mais a jovem e, numa ação mais brusca, ela ameaça jogar-se, num voo certeiro de encontro à morte. Nesse instante, os bombeiros pedem cautela – um passo incerto, uma atitude mal planejada, certamente levaria aquele episódio a um fim drástico.
O pastor e o psicólogo descem do prédio a pedido o chefe de policia. Ao chegar à rua, o religioso mais uma vez é hostilizado pelo incrédulo: “Você teve a oportunidade de provar a existência do teu Deus e fracassou”. Mas ele não se deixa abalar em sua fé, segue em frete de cabeça erguida, por saber que as linhas tracejadas pelo Criador podem até parecer tortuosas, mas têm seus fins providos pela justiça e a benevolência.
Alguns jovens inconsequentes aproveitam o momento hostil criado pelo cético e gritam para a moça pular, mas são contidos pela multidão. Em meio à tamanha tensão, surge um homem que senta a dois metros da suicida. O chefe de polícia e o corpo de bombeiros ignoram sua presença. O homem aparenta ter uns cinquenta anos, poucas rugas no rosto, barba longa e olhar intenso. Ele carrega uma mochila com alguns equipamentos que a suicida não consegue identificar.
– Você não poderia ter chegado aqui antes de mim – reclama o estranho.
A suicida não compreende aquela atitude. Por alguns segundos, a vontade de desistir da vida é esquecida e cede lugar a indignação, devido à indiferença do forasteiro.
– Meu propósito era pular do topo, afinal, é o prédio mais alto dessa metrópole. Mas diante dessa confusão que você arrumou, tenho que contentar-me com o vigésimo andar. Não vou desistir do meu sonho por sua causa – reclama outra vez.
Nesse momento as autoridades discutem novas ações de resgate.
O homem abre a mochila, retira uma corda, um conjunto de fitas chamado bouldrier, freio oito, capacete e um mosquetão.
–Já fui um alpinista renomado, escalei o monte Everest – a mais alta montanha da Terra – que fica no continente asiático, na cordilheira do Himalaia (fronteira de Nepal com o Tibet). Fiquei impossibilitado, por muitos anos, de exercer o alpinismo, mas nunca desisti do meu sonho. Afinal, o sonho é uma tempestade de sentimentos que movem os moinhos da existência humana – afirma o estranho, olhando nos olhos da moça. – E você também está aqui para realizar um sonho? – questiona.
–Não! Estou aqui porque desisti de sonhar.
–Não posso sentir sua dor, mas já passei por momentos semelhantes quando fui impedido de praticar alpinismo. Entretanto, o Universo sempre nos proporciona novas oportunidades, colocando as coisas no seu devido lugar, no momento certo.
O homem checa os equipamentos de segurança, tira do bolso um papel gasto pelo tempo e começa a ler em voz alta: “Ainda que eu ande pelo vale da sombra e da morte, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo: a tua vara e o teu cajado me consolam” (Salmo 23.4). Em seguida, retira uma espécie de spray, insinua algum ritual místico e, projeta um jato de névoa seguido de uma fumaça branca, gerando uma sensação de paz.
A suicida sente-se tocada por aquelas palavras. Lembra-se de sua infância, da vida na casa dos avós e do lindo jardim em que brincara nos fins de tardes. Ela escuta alguns passos, uma voz suave se aproxima, ao olhar para trás vê sua avó – que já falecera há anos – estendendo-lhe a mão. Mesmo sem ter a certeza se é real ou delírio, segue os desejos do seu coração: levanta-se, abraça sua avó querida e segue em direção dos bombeiros que se preparavam para mais uma tentativa de resgate.
A moça desce do prédio protegida pelo chefe de polícia. O povo aplaude sua decisão. Na sala de recuperação do consultório psicológico, ela questiona a presença do homem que sentara a seu lado: “O que acontecera com ele?”. Mas ninguém sabe informar a presença desse estranho que ela afirma ter visto, nem muito menos seu destino.
Depois de uma semana a moça é liberada, após uma rigorosa prescrição médica. A jovem volta para casa sem saber se tudo não passou de uma alucinação, ou se ela foi salva por um anjo enviado por Deus. Entretanto, leva a certeza de que o Criador não abandona seus filhos. Ele está presente em cada folha que cai no chão, na aurora, no soprar do vento, no pôr do sol e, até mesmo nos acontecimentos que alguns insistem em chamar de acaso.

 

   
Publicado no livro "Seleção de Contos Premiados" - Edição Especial - Junho de 2014