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Aparecido Klai
Santo André / SP

 

A casinha da colina

- Vamos até a casa assombrada?
Silêncio.
Durante as férias de fim de ano do grupo escolar quando não havia TV a cabo, vídeo game, computador e internet, explorar morros e vales do bairro era o que havia de mais interessante.
A proposta de visitar a casinha da colina aconteceu num período de férias de verão em 1968, quando alguns garotos de dez a doze, anos estavam reunidos desde cedo aguardando outros meninos para as “peladas” nas ruas de terra da vila ou nos campinhos de terra batida. Se não houvesse consenso ou número para o futebol poderia ser para rodar pião, empinar pipa, jogar marreta ou bolinha de gude, brincar de esconde-esconde, de pega e de mãe da rua, entre outras atividades que divertiam.
Era uma manhã de sol preguiçoso surgindo e deslizando entre dois coqueiros no alto do morro por trás da fumaça amarelada da Refinaria até uma velha casinha branca que muitos diziam ser mal assombrada.
Aquela casa intrigava a imaginação da meninada. Apenas por existir ali era uma provocação. Vez por outra surgia a proposta de se conferir o que havia de verdade e o que havia de lenda numa velha casa onde à noite, algumas vezes, alguém viu e ouviu ou pensou ter visto luzes e ouvido vozes.
Com menos idade talvez houvesse menos coragem e mais sinceridade, mas aos dez ou doze anos, ou se tem ou se demonstra ter. De qualquer forma ninguém ousaria recusar um desafio sem correr o risco de ser chamado de medroso.
- Vamos!
- Quando?
- Agora!
- Então vamos!
Então foram.
Era simples, bastava descer a rua, atravessar a avenida e seguir descendo até o córrego, atravessar por uma pequena e velha ponte de madeira e subir o morro. A casinha ficava ali, bem no topo da colina. Branca, quase isolada, muito distante das outras, cercada de poucas árvores altas e algum mato baixo. Dizia-se que no passado existira ali um sítio ou uma fazenda.
Chegaram fácil ao topo do morro de onde viram a vila do alto. As ruas de terra, a poeira levantando ao passar de uns poucos carros, o campinho sem grama, o grupo escolar, as casas e seus quintais, varais com lençóis brancos, panelas de alumínio reluzindo ao sol penduradas em cercas de madeira.
- Vamos entrar?
Alguém se atreveu a argumentar que ir até lá era um propósito, entrar já era outro e que não era justo começar um jogo e ver as regras sendo alteradas ao longo da partida. No máximo uma espiadinha por entre as frestas da gelosia ou pelos vidros da cozinha.
- Vocês estão com medo?
Estavam. Mas ninguém iria assumir. Era preciso respirar fundo para tentar conter aquele descontrolado coração que pulsava desenfreadamente irrigando os músculos esqueléticos e preparando o organismo para correr.
- E então?
- Tudo bem seus covardes! Quem tiver coragem vem comigo, quem for maricas que fique.
Meu Deus, que forma de se resolver as diferenças. Mas ninguém dizia nada. Ninguém se contrapunha. Então seguiram o líder, que deveria estar com tanto ou mais medo que qualquer um dos outros meninos.
Portas trancadas, janelas fechadas. Parece que tudo se resolvia por si e de forma conveniente.
- Vamos entrar.
Infelizmente todo time tem um “cabeça de área” mais afoito, mais atrevido, mas é quem marca os gols. E quem leva a fama e os melhores salários.
- E se morar alguém aí?
- Bobagem, não tem ninguém. Não tem roupas estendidas, varais, cercas ou sinal de movimento. A casa deve estar abandonada.
- E o fantasma?
- Que fantasma? Você acredita nisso?
- Não, mas as histórias...
- Boa oportunidade para confirmar se são verdadeiras. E, além disso, está de dia, fantasmas não gostam da luz do dia.
- Nós só vamos forçar a porta bem devagarinho e espiar o que há.
A porta não se movia então a saída foi encontrar um pedaço de pau para dar uma pancada na porta.
- Quem está aí?
Susto e silêncio.
- Quem falou?
Olharam-se em silêncio. Um suor frio corria pelo rosto de cada um deles.
- Quem esta aí? A voz repetiu.
Susto e correria. Não se divisou moitas, árvores, cercas ou trilhas. A garotada desembestou-se numa correria louca. Era cada um por si e quem ficasse para trás que não solicitasse auxílio.
Para chegar até o alto do morro levou-se quinze ou vinte minutos, para descer a gravidade foi muito mais favorável do que Newton poderia imaginar ou calcular. E o afoito, como todo bom artilheiro, foi o mais veloz.
Só pararam quando retornaram à segurança do ponto de partida. Ofegantes, quase sem poder falar, pernas trêmulas.
- Vocês viram?
- Eu não vi nada.
- O fantasma, você não ouviu?
- Parecia voz de criança.
- Que susto. Vocês viram a ventania que acompanhava a voz?
- Viram como escureceu de repente? E como a porta tremeu logo após a pancada com aquela madeira?
Passados alguns dias, com tantos outros garotos reunidos, a história ainda somou alguns novos detalhes. Eram gritos, fumaça, portas se abrindo e fechando por si, cães, morcegos, a voz de uma velha ou de um velho.
- Bando de maricas. O vento balança uma janela e as “mocinhas” correm com pavor do ranger das dobradiças.
- Vão até lá se vocês não acreditam e tem mesmo coragem.
- Nós vamos!
- Quem for homem virá conosco.
Quanta besteira. Mais quinze ou vinte minutos num desce ruas, atravessa avenida, atravessa o Córrego e começa a escalada para chegar novamente até a casa.
Tudo foi acontecendo de modo tão rápido que ficou a impressão de existirem minutos diferentes de outros minutos. Para chegar até o topo do morro consumiram-se os minutos mais rápidos.
Mesma porta, mesmo pedaço de pau. Mas agora alguém assumiu o comando da tropa e determinou:
- Quem correr é um “maricas”.
- Quem está aí?
Silêncio. Todos completamente calados. Bocas e cérebros calados. Só medo e expectativa.
É uma voz de criança. Parece ser de menina. Todos parados, enraizados ao chão, mas sem coragem de responder. Chegou o momento dos minutos mais longos.
- Quem está aí?
Todos plantados no chão. Ninguém se mexe, respira ou pensa. A temperatura do corpo oscila, o suor começa a brotar por todos os poros, os batimentos cardíacos aumentam, a respiração se acelera. Todos pálidos. O cérebro ordena a fuga, mas, por algum motivo nem todos se movem.
Então a porta começa a se abrir lentamente. Os que não conseguem cerrar os olhos de tão paralisados viram surgir uma menina, com expressão de assustada e cara de choro, aparentando 6 ou 7 anos, de cabelos e olhos claros, vestido branco, carregando uma boneca de pano com rosto de porcelana.
- Meu pai foi trabalhar e minha teve de sair.
A princípio um susto, ninguém diz nada, ficam olhando espantados para a garotinha, depois um olha para o outro, a tensão se desfaz, os músculos finalmente relaxam e todos explodem em risos.
Era real, não era fantasma. Quantas mentiras tinham dito daquele lugar. Como alguém pode temer uma menininha sozinha e assustada?
Então se percebeu que a tropa se dividira em duas. Metade dos garotos estava ali, outra metade havia desertado não se sabe como ou quando, mas do alto do morro era possível vê-los atravessando o córrego e subindo a rua com um pique de fazer inveja a qualquer maratonista. Nem olhavam para trás.
- Querem biscoito? Pergunta a menina.
- Claro.
Tinha biscoito de polvilho e limonada. Tinha cortinas de linho e tapete na sala. Tinha cadeira de balanço e retratos antigos pendurados na parede, uma cristaleira num canto da sala e cadeiras de respaldo alto. Não tinha rádio nem tinha televisão.
- Como é o seu nome?
- É Ana.
E ficaram ali, jogando conversa fora, tomando refresco, comendo biscoito de polvilho e matando o tempo.
No dia seguinte reuniram-se no campinho da vila os dois grupos. Os com coragem e os com habilidade para correr.
Se antes havia histórias depois dessa aventura passaram a haver fatos. Havia uma versão, recheada de testemunhas e com sabor de biscoito de polvilho com limonada e havia um bando de garotos que receberam a alcunha de “os maricas”.
O apelido parece que não agradou. Aconteceram algumas brigas no estilo do “quem for homem cospe aqui”, “bate você primeiro” e uma pedrada que custou quatro pontos num crânio quase sem uso.
Então, num belo dia, quando os ânimos estavam mais calmos, os dois grupos acabam se reunindo por acaso e vão ao topo do morro. Quem não conhecia fica conhecendo, come biscoito, toma limonada e esquece essa bobagem de casa mal assombrada. Homem que é homem nem acredita nestas coisas.
E assim, ir até à casinha acaba por virar rotina. Aninha sempre os recebia segurando a mesma boneca de pano.
- Vamos até a casinha da colina?
- De novo! Será que vocês já não se cansaram de ficar brincando com a menina?
- É verdade! Tem gente aqui trocando o futebol por uma boneca de porcelana.
- Eu não vou!
- Nem eu!
- Vamos jogar bola?
Na verdade alguns garotos queriam ir, sentiam pena em ver Aninha ali sozinha e isolada de outras crianças. Pensavam de um modo, mas agiam de acordo com a turma da vila.
O horizonte escuro era prenuncio de chuva e o conforto de casa muito acalentador. E de fato choveu. Chuva rápida de verão, poucos relâmpagos e trovões, depois, à tardinha, antes do crepúsculo, houve uma revoada de içás. Enquanto alguns garotos namoravam um arco-íris outros garotos foram à caça das içás, para levarem como refeição.
A medida que a noite se consumou, enquanto todos tomavam ar reunidos próximo ao campinho, puderam ver uma luz se acender na sala da casinha branca do alto do morro. Ficaram olhando e tinham a sensação de que Aninha também os observava.
Alguns dias depois daquela tarde chegaram ao morro alguns caminhões e tratores amarelos. Começaram um serviço de terraplenagem naquela área que já era quase propriedade dos meninos e como não lhes pediram permissão e nem lhes consultaram, resolveram ir até lá para tirar satisfação.
Chegaram quando um trator se aproximava da casinha branca onde morava Aninha, a menina de cabelos e olhos claros.
E foram gritando para o trator parar. O tratorista não os ouviu mas parou ao perceber os meninos gesticulando junto ao trator.
- O que vão fazer?
- Vamos derrubar a casa, aquelas árvores, acertar o declive do terreno e deixar a área preparada para a construção de um cemitério.
- Não podem derrubar a casa tem pessoas morando aí.
- A informação que temos é que está vazia.
Não adianta ficar discutindo com o tratorista nem com o encarregado. Gente teimosa só acredita quando vê. Era só ir até a porta da sala, bater duas ou três vezes com o dorso das articulações das falanges e conferir. O encarregado cedeu a insistência dos garotos e foi com eles para certificar.
Uma batida, espera e um silêncio que consumia aqueles minutos longos. Outra batida e de novo pausa e silêncio, não se ouvia o barulho dos caminhões nem dos tratores do outro lado da casa.
- Vamos tentar mais uma vez.
E tentou-se mais uma, mais outra e mais outras. Nada de Aninha abrir a porta.
Por fim um dos funcionários, mais preocupado com os meninos, abriu a porta sem muita dificuldade e todos entraram. Casa quase vazia. Teias de aranhas numa velha cadeira de balanço, paredes rachadas, telhado desmoronando, muito pó por toda parte e, numa parede, um velho e desbotado retrato de 1912, de uma menina de 6 ou 7 anos, vestido branco, cabelos e olhos claros, segurando uma boneca de pano com rosto de porcelana.


   
Publicado no livro "Seleção de Contos Premiados" - Edição Especial - Junho de 2014