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Sophia Munari Samhan
Balneário Camboriú / SC

 

Amor amigo

Esta é uma manhã fria, estranho o clima, tão diferente dos outros dias, acho que o inverno chegou. Queria poder me importar com o vento gelado que arde em minhas narinas ou com a forte vontade que tenho de entrar em casa e ir correndo para frente do fogão me esquentar enquanto a vovó prepara o nosso café, mas não posso, nem quero arredar o pé daqui enquanto eu não o ver.
Minha situação deixou de ser constrangedora há muito tempo, agora é uma coisa tão patética que nem sei se já inventaram um nome para isso, por sorte apenas a vovó conseguiria me ver nesse momento e ela está muito ocupada lá na cozinha. Eu estou agachada no quintal de minha própria casa, atrás de um muro branco de menos de um metro de altura me escondendo dele.
Quando quase paro de sentir os dedos de tão congelados que estão, vejo-o dobrando a esquina e por um breve momento sou aquecida pela adrenalina. Levanto-me, pego uma sacola de mercado que estava no chão ao meu lado e tento agir com naturalidade.
— Oi Gi. — Diz ele com sua voz tão forte e grave que sinto quebrar o silêncio do mundo inteiro. — Pulou da cama cedo.
— A vovó me fez ir ao mercado. — O sangue ferve e levanto a sacola dando de ombros, tentando ser casual.
Marcelo não diz mais nada, continua sua caminhada até sua casa que fica três quarteirões da minha. Eu entro, solto minha sacola de mercado com compras cenográficas - basicamente embalagens vazias de bolo, bolacha e leite – dentro de uma gaveta do armário que ninguém abre e vou tomar café.
Faço isso todos os dias, mas só falo com ele de vez em quando. Na maioria das vezes apenas o observo escondida.
Apenas eu conheço esse amor, apenas eu sei de todas as vezes que comprei roupa pensando se era do tipo que ele gostava ou todas as vezes que passei horas no salão na esperança de que ele me notasse.
Mas ele nunca notou. Nunca notou que sei as músicas que ele curte de cor, que sei escrever o seu sobrenome difícil sem errar ou que sei o seu signo até no horoscopo chinês.
Não que eu queira que ele saiba todas as coisas idiotas que faço, como escrever meu nome com o deles por horas a fio, visitar sites de astrologia para ver se a gente combina ou até mesmo espiar ele indo comprar pão todos os dias de manhã.
A maior controvérsia é nos momentos em que ficamos sozinhos. É o céu e o inferno acontecendo ao mesmo tempo. Todos aqueles finais de semana que ele assiste filmes comigo aqui em casa, até hoje rio lembrando que ele pensa que meu gênero favorito é terror, queria ter coragem para lhe contar que medo é apenas uma desculpa para me envolver em seus braços, afundar a cabeça em seu peito e sentir o seu perfume.
Também gostaria de dizer o quanto me faz sofrer quando arruma uma daquelas namoradas estúpidas. O que mais dói é saber que elas podem o fazer feliz e eu não. Ele nunca irá me notar, seis anos sendo sua melhor amiga já me provaram isso.
O dia transcorre normal, é sábado, hoje eu não trabalho nem estudo ou tenho qualquer outro compromisso. Marcelo ligou após o almoço, vovó que atendeu, eu estava no banho. Quando ela me disse que ele havia ligado e viria me ver à tarde eu explodi de raiva, disse que ela podia muito bem ter me passado o telefone.
Coitada da vovó, ficou lá, em pé no meu quarto me olhando com aqueles seus olhos grandes e bondosos sem saber ao certo o que dizer, odiei minha atitude, mas era tarde demais para voltar atrás, pedi desculpas e boa do jeito que a vovó é, logo fui perdoada.
Abri meu guarda roupas e fui tirando várias peças de dentro, demorou muito. Queria encontra uma peça sexy sem ser vulgar, justa sem ressaltar as gordurinhas, alguma coisa que me fizesse desejável e ao mesmo tempo meiga. Escolhi um short larguinho e uma regata decotada.
Quando a campainha soa já passa das quatro horas da tarde e a vovó está na igreja, demoro um minuto contado no relógio, não quero parecer a desesperada que espera ao lado da porta, nem a desligada que deixa visita esperando.
Apesar de já saber quem era fico em choque. Ele está lá, parado, com sua camisa de botão que o faz parecer um homem sério, sorrindo e expondo suas covinhas, segurando um thriller sangrento.
Parte de mim quer bater a porta na cara dele, sair correndo para o meu quarto e queimar todas as fotos que tenho de nós dois escondidas embaixo da cama. Parte de mim quer pular em seu colo, cruzar as pernas ao redor de seu corpo e os braços ao redor de seu pescoço e não soltar nunca mais.
Mas fico parada e o tempo parece congelar. Ninguém se move, nem fala e tenho a sensação de que não respiro, volto a mim quando os passarinhos cantam na rua, é tão lindo. Isso me faz lembrar um documentário que vi na tv outro dia, falava sobre a fidelidade dos pássaros é pensando nisso que faço o impensável.
— Eu te amo! — Digo num sussurro e o mundo vira uma grande massa vermelha e pulsante.


   
Publicado no livro "Seleção de Contos Premiados" - Edição Especial - Junho de 2014