Primeira vez neste site? Então
[clique aqui]
para conhecer um pouco da CBJE
Antologias: atendimento@camarabrasileira.com
Produção de livros: cbje@globo.com
Contato por telefone
Antologias:
(21) 3393 2163
Produção de livros:
(21) 3547 2163
(21) 3186 7547

Manoel Neto de Sousa
Salitre / CE

O menino

O menino atravessa a rua vagarosamente, levando em si o olhar maroto e os dentes à mostra, de onde deixa resvalar um vulto enérgico de alegria. Vai pedalando a bicicleta, a quem deu o nome de Rampeira, comprada pelo seu bom pai com o dinheirinho renhido que o pobrezinho recebe todo mês. Rampeira porque sobe a rampa do Alto Alegre sem sequer ranger, sem gemido algum. Também, com os trocados que ganhara no aviamento, onde a sua Mainha trabalha e aonde ele vai às vezes raspar mandioca, comprara catraca, janda, corrente, tudo novo.
As canelas pequenas, mas firmes, estalam o pedal. A boca de menino contente de Daniel deixa sair o som bonito, como o cântico de aboiador que tange o gado em estrada distante:
- Êh, boi!
Daniel é tido como um bom menino. Ajuda a Mainha dele nos afazeres da casa: põe uma rodilha de molho n’água e sabão quando Mainha não pode fazê-lo, ajuda-a a dar banho nos irmãos menores, bate o osso no prato para chamar a cadela que vive amarrada ao fundo do quintal cercado de varas de marmeleiro, leva o prato de feijão com arroz para o pai que, por ter só uma perna, passa os dias na varanda, balançando-se na cadeira, ora fumando o grosso cigarro, ora assoviando.
A mãe de Daniel não sabe viver sem o garoto. Este, se decide dar um passeio e demora a voltar para casa, ela logo grita:
- Ôh, Daniel!
Além de bom, Daniel é contente, gosta de brincar e de ver passarinho. Se vir um pardal, atira um punhadinho de xerém, que é para o bichinho não ir embora e demorar-se um pouco mais. Quando sai rumo ao muro, percebe a presença da cachorrinha, que balança a cauda, e vai brincar com ela.
- Ôh, Baleia! Cô! Cô!
Daniel carrega, passando pela rua, mal tendo saído os primeiros raios luminosos do sol, uma moringa de borracha no bagageiro da sua sucata de cor já amarrotada de tão acabadinha que é. É que Mainha acordou com o cantar dos galos e depois o foi cutucar na cama para ver se ele acordava, pois tinha que ir pegar água no poço para realizar os afazeres do dia. Ela ficara coando o café quando ele desapareceu para cumprir a ordem.
Não fica longe o poço. Por mais que pese a moringa, quando cheia de água, ou por mais que dê trabalho amarrá-la com a liga de borracha, feita de uma câmara de pneu de bicicleta, no bagageiro, Daniel gosta de fazer esse serviço. Além do mais, gosta de sair para a rua, pois sempre descobre alguma novidade, como um passarinho desconhecido nos fios de algum poste, ou um cachorrinho pequeno nos avolumados lixões da cidade. No rumo do poço, em cima da bicicleta veloz, vai pegar a água.
Na volta, para num terreno descampado, perto de onde construíram uma casa nova, porque algo lhe prende a atenção: um pássaro morto. Não um passarinho qualquer, desses que aparecem todas as manhãs, e os quais ele nunca cansa de olhar. Do contrário, tinha uma cor azulada e as penas muito bonitas. Ele se lembrou que só vira um desses uma vez, no sítio em que mora a sua avó, quando com o primo foi olhar as arapucas dentro da mata. Numa havia caído um caga-sebo, pássaro feio, e em outra estava um desses que encontrara sem vida.
O menino alisa as penas no corpinho já endurecido, tenta abrir com as unhas o bico. Tão bonitinho é que vai levar ele para casa: a Mainha deve ver. Pendura-o no guidom e quer partir em direção a casa com a água.
Mas é pouca a sua sorte, pois enquanto ele está entretido, contemplando o passarinho morto, um assovio no lábio, um moleque vem e destampa a moringa, fazendo com que a água derrame toda. Depois foge, rindo.
- Filho da mãe – exclama Daniel, desraivoso.
Pode voltar ao poço e retirar nova água, porém, dali está um pouco distante. Vai logo voltar para casa, mostrar primeiro à mãe o seu achado, porque a ânsia enormida-se cada vez mais. E imagina a cara de Mainha quando vir o bichinho morto em suas mãos. “Pássaro mais bonito, Daniel”, ele pensa que elá dirá. Em seguida, mostrará aos irmãos aquela boniteza.
Fosse vivo o pássaro, iria trabalhar no aviamento, comprar uma gaiola e alpiste. Amanhecesse o dia, pendurava na parede para cantar, e os pardais iriam chegar perto.
Pedala, pedala rápido até aportar na calçada, entrar e correr para o quintal, onde Mainha varre com a vassoura de palha com que ele e os irmãos brincam de cavalo de pau.
- Cadê a água, menino? – indaga a mãe.
- Parei para ver o passarinho morto... Veio o Cobra Preta, filho duma mãe... – disse Daniel, a voz tão triste que dava pena.
Mas a mulher não quer saber. Quase não acredita no que o menino diz, mas vê a moringa seca na bicicleta encostada ao pé da calçada. Faz uma cara feia, cara que Daniel já conhece. Quer gritar com ele, ralhar até que ele chore e, em seguida, dar-lhe uma sova com o relho que guarda justamente para isso, quando merece. Quem sabe com dois os três tabefes ele nunca mais descumpra suas ordens. “Moleque safado”, pensa ela instintivamente. Mas Daniel age mais rápido que o pensamento de Mainha. Tira do bolso o saco vazio de açúcar com o passarinho morto dentro, mostra-o, e, quase chorando, diz:
- Trouxe pra mainha ver. É tão bonitinho.
Mainha olha o passarinho morto nas mãos de Daniel, e lágrimas pensam em rolar dos olhos. Tão bonitinho o pássaro que Daniel trouxe com entusiasmo para que ela veja. Trouxe só para ela. A fúria, incontinente, desaparece, e ela torna-se toda amorosa. Porque o filho lembra-se dela. Ainda mais, perceber o quanto Daniel é sensível dá-lhe mais entusiasmo, a ponto que pensa consigo mesma: “tenho um menino de ouro”. Aquela postura de Daniel sim é remédio para o sofrimento da vida.
Mainha ainda põe-se alguns instantes a contemplar o passarinho de penas azuladas, até olhar para Daniel com um olhar de perdão. Quer abraçar o menino, mas não o faz, porque tem a sua cautela e seu amor silencioso: não sabe mostrar sua fragilidade. Com a voz mansa e amorosa, diz:
- Está bem, meu filho, pois vá buscar a água.
E Daniel se vai, montado na Rampeira, alegre, mostrando para os moleques curiosos do Alto o passarinho morto. Mainha volta aos afazeres. E percebe o quanto a vida é boa.



   
Publicado no livro "Seleção de Contos Premiados" - Edição Especial - Junho de 2014