Manoel
Neto de Sousa
Salitre / CE
O
menino
O menino atravessa a rua vagarosamente, levando
em si o olhar maroto e os dentes à mostra, de onde deixa
resvalar um vulto enérgico de alegria. Vai pedalando a
bicicleta, a quem deu o nome de Rampeira, comprada pelo seu bom
pai com o dinheirinho renhido que o pobrezinho recebe todo mês.
Rampeira porque sobe a rampa do Alto Alegre sem sequer ranger,
sem gemido algum. Também, com os trocados que ganhara no
aviamento, onde a sua Mainha trabalha e aonde ele vai às
vezes raspar mandioca, comprara catraca, janda, corrente, tudo
novo.
As canelas pequenas, mas firmes, estalam o pedal. A boca de menino
contente de Daniel deixa sair o som bonito, como o cântico
de aboiador que tange o gado em estrada distante:
- Êh, boi!
Daniel é tido como um bom menino. Ajuda a Mainha dele nos
afazeres da casa: põe uma rodilha de molho n’água
e sabão quando Mainha não pode fazê-lo, ajuda-a
a dar banho nos irmãos menores, bate o osso no prato para
chamar a cadela que vive amarrada ao fundo do quintal cercado
de varas de marmeleiro, leva o prato de feijão com arroz
para o pai que, por ter só uma perna, passa os dias na
varanda, balançando-se na cadeira, ora fumando o grosso
cigarro, ora assoviando.
A mãe de Daniel não sabe viver sem o garoto. Este,
se decide dar um passeio e demora a voltar para casa, ela logo
grita:
- Ôh, Daniel!
Além de bom, Daniel é contente, gosta de brincar
e de ver passarinho. Se vir um pardal, atira um punhadinho de
xerém, que é para o bichinho não ir embora
e demorar-se um pouco mais. Quando sai rumo ao muro, percebe a
presença da cachorrinha, que balança a cauda, e
vai brincar com ela.
- Ôh, Baleia! Cô! Cô!
Daniel carrega, passando pela rua, mal tendo saído os primeiros
raios luminosos do sol, uma moringa de borracha no bagageiro da
sua sucata de cor já amarrotada de tão acabadinha
que é. É que Mainha acordou com o cantar dos galos
e depois o foi cutucar na cama para ver se ele acordava, pois
tinha que ir pegar água no poço para realizar os
afazeres do dia. Ela ficara coando o café quando ele desapareceu
para cumprir a ordem.
Não fica longe o poço. Por mais que pese a moringa,
quando cheia de água, ou por mais que dê trabalho
amarrá-la com a liga de borracha, feita de uma câmara
de pneu de bicicleta, no bagageiro, Daniel gosta de fazer esse
serviço. Além do mais, gosta de sair para a rua,
pois sempre descobre alguma novidade, como um passarinho desconhecido
nos fios de algum poste, ou um cachorrinho pequeno nos avolumados
lixões da cidade. No rumo do poço, em cima da bicicleta
veloz, vai pegar a água.
Na volta, para num terreno descampado, perto de onde construíram
uma casa nova, porque algo lhe prende a atenção:
um pássaro morto. Não um passarinho qualquer, desses
que aparecem todas as manhãs, e os quais ele nunca cansa
de olhar. Do contrário, tinha uma cor azulada e as penas
muito bonitas. Ele se lembrou que só vira um desses uma
vez, no sítio em que mora a sua avó, quando com
o primo foi olhar as arapucas dentro da mata. Numa havia caído
um caga-sebo, pássaro feio, e em outra estava um desses
que encontrara sem vida.
O menino alisa as penas no corpinho já endurecido, tenta
abrir com as unhas o bico. Tão bonitinho é que vai
levar ele para casa: a Mainha deve ver. Pendura-o no guidom e
quer partir em direção a casa com a água.
Mas é pouca a sua sorte, pois enquanto ele está
entretido, contemplando o passarinho morto, um assovio no lábio,
um moleque vem e destampa a moringa, fazendo com que a água
derrame toda. Depois foge, rindo.
- Filho da mãe – exclama Daniel, desraivoso.
Pode voltar ao poço e retirar nova água, porém,
dali está um pouco distante. Vai logo voltar para casa,
mostrar primeiro à mãe o seu achado, porque a ânsia
enormida-se cada vez mais. E imagina a cara de Mainha quando vir
o bichinho morto em suas mãos. “Pássaro mais
bonito, Daniel”, ele pensa que elá dirá. Em
seguida, mostrará aos irmãos aquela boniteza.
Fosse vivo o pássaro, iria trabalhar no aviamento, comprar
uma gaiola e alpiste. Amanhecesse o dia, pendurava na parede para
cantar, e os pardais iriam chegar perto.
Pedala, pedala rápido até aportar na calçada,
entrar e correr para o quintal, onde Mainha varre com a vassoura
de palha com que ele e os irmãos brincam de cavalo de pau.
- Cadê a água, menino? – indaga a mãe.
- Parei para ver o passarinho morto... Veio o Cobra Preta, filho
duma mãe... – disse Daniel, a voz tão triste
que dava pena.
Mas a mulher não quer saber. Quase não acredita
no que o menino diz, mas vê a moringa seca na bicicleta
encostada ao pé da calçada. Faz uma cara feia, cara
que Daniel já conhece. Quer gritar com ele, ralhar até
que ele chore e, em seguida, dar-lhe uma sova com o relho que
guarda justamente para isso, quando merece. Quem sabe com dois
os três tabefes ele nunca mais descumpra suas ordens. “Moleque
safado”, pensa ela instintivamente. Mas Daniel age mais
rápido que o pensamento de Mainha. Tira do bolso o saco
vazio de açúcar com o passarinho morto dentro, mostra-o,
e, quase chorando, diz:
- Trouxe pra mainha ver. É tão bonitinho.
Mainha olha o passarinho morto nas mãos de Daniel, e lágrimas
pensam em rolar dos olhos. Tão bonitinho o pássaro
que Daniel trouxe com entusiasmo para que ela veja. Trouxe só
para ela. A fúria, incontinente, desaparece, e ela torna-se
toda amorosa. Porque o filho lembra-se dela. Ainda mais, perceber
o quanto Daniel é sensível dá-lhe mais entusiasmo,
a ponto que pensa consigo mesma: “tenho um menino de ouro”.
Aquela postura de Daniel sim é remédio para o sofrimento
da vida.
Mainha ainda põe-se alguns instantes a contemplar o passarinho
de penas azuladas, até olhar para Daniel com um olhar de
perdão. Quer abraçar o menino, mas não o
faz, porque tem a sua cautela e seu amor silencioso: não
sabe mostrar sua fragilidade. Com a voz mansa e amorosa, diz:
- Está bem, meu filho, pois vá buscar a água.
E Daniel se vai, montado na Rampeira, alegre, mostrando para os
moleques curiosos do Alto o passarinho morto. Mainha volta aos
afazeres. E percebe o quanto a vida é boa.
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