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Cleverson Camelo Silveira
Luziânia / GO

O destino de Elias

Pacta sunt servanda
(Domitius Ulpianus)

A maldição de Elias foi ter desejado, a qualquer custo, aquela casa localizada à Rua Bate-Couro. A possibilidade de se tornar um homem ainda mais rico, vivendo cem anos a mais, sem se envelhecer, o cegou não o deixando mensurar a dimensão do preço que teria que pagar.

Para muitos um investimento arriscado, pois, de estilo colonial e beirando um século de existência, a casa necessitava de inúmeros reparos. Aparentemente o local não tinha nenhum atrativo, exceto para Elias que, em segredo, tinha na casa estranha tara. Além do mais, corria pela cidade histórias assombradas sobre o local, algo que deixava sua esposa Luzia pouco à vontade.

— Não ligue para estas bobagens — disse Elias, tentando confortar a esposa.

— Mas muitos dizem ter visto o vulto de uma mulher rondando a casa...

— Besteiras, meu bem. Não dê atenção a eles...! Besteiras...!

Não tardou — mesmo contra a vontade da esposa — e Elias iniciou árdua tarefa de reforma do casebre. Não hesitou gastar considerável quantia de dinheiro. E, na iminência de não ser capaz sozinho, contratou uns homens para ajudá-lo.

No primeiro dia viu um deles sair pálido do interior da casa. O rapaz franzino dizia ter sentido uma voz próxima sussurrar seu nome. Seu relato provocou risos nos colegas. O homem não quis mais voltar.

Os dias se seguiram e os eventos se sucederam. Situações inexplicáveis como a janela do quarto que não se abria de jeito nenhum; ou a constatação inevitável: o vulto de uma mulher que todas as tardes tomava água na cozinha.

Elias agora está sozinho e sem opções já que os boatos correram a pequena cidade de maioria humilde e supersticiosa.

Sem ajuda, Elias abandonou a reforma da casa e se prestou apenas às escavações no fundo do quintal, sob a sombra da centenária mangueira. Ignorando o cansaço, ele varou noites em busca de seu objetivo. O alcançou! Eram para mais de cinquenta quilos de ouro. Não ousou pensar muito, trancando-se na casa. Nem a esposa conseguia contatá-lo.

A partir de então, os eventos se intensificaram. Começou pelo ouro, que foi desaparecendo pouco a pouco, deixando Elias desesperado. Mas, foi numa tarde que Elias se viu diante de uma experiência aterradora.

— Obrigada...! — ecoou uma voz feminina no semiescuro do quarto.

— Olá, quem está aí? — Elias perguntou à porta do quarto, com voz trêmula.

— Obrigada por me desenterrar!

— O que quer dizer?

Sem respostas, Elias, no entanto, notou que alguém se encontrava sentado. Ouviu apenas um ruído peculiar. Aproximou-se com um tímido passo, mas acabou contido por uma reação singela de uma mulher.

— Finalmente, juntos! — ecoou outra vez a voz penetrante.

— O que faz aqui? E quem é você? — outra vez não teve resposta.

Percebeu, contudo, que a mulher tinha longos cabelos negros, corpo magérrimo, de mãos e dedos longos. Procurou o melhor ângulo e não viu o rosto dela, pois seus cabelos caiam sobre o vazio. Parecia trazer nas mãos um tipo de tecido...

Acendeu a luz e surpreendeu-se ao ver o corpo da mulher desaparecer, decompondo-se na luz, que revelou uma velha e empoeirada máquina de fiar.

Ainda em poder de algumas pepitas de ouro, Elias adormeceu em um canto. Acordou com frio e sob um breu intenso. Imediatamente se deu conta de que acordara de pé. E que não conseguia se mover do lugar.

Enquanto tentava escapar de sua terrível agonia, percebeu alguém chegando a casa. Era sua esposa. Sentiu-se aliviado, mas por pouco tempo, pois ao chamar percebeu que ela não podia ouvi-lo. Gritou com todas as forças, mas foi inútil. Em seguida, experimentou um leve aperto sobre seu tórax, algo como uma camisa de força. Estava tudo muito escuro e ele nada podia ver. Porém, com o esforço das mãos, notou se tratar de uma camisa, de tecido macio e mangas longas. Mas ele não conseguia retirá-la; era como se a camisa fosse sua própria pele, asfixiando-o lentamente.

De repente, lhe aproximou uma presença. O ambiente ao seu redor esfriou bruscamente. Alguém ou alguma coisa respirava bem ao seu lado. Não teve coragem de olhar. Gritou outra vez o nome da esposa...

— Desista, ela não pode ouvi-lo — outra vez a voz penetrante ecoou no escuro.

— Quem é você? — tomado pelo pavor Elias ainda reuniu forças para perguntar.

— Não se lembra?

— Não me lembro de quê, pelo amor de Deus?

— Venha..., vamos cumprir nosso trato.

— Não..., não...., ainda tenho cem anos...

— O que são cem anos perto da eternidade?! Quanto à sua esposa, eu não a quero — dizia a mulher, enquanto suas mãos geladas deslizavam sobre o corpo de Elias.

Já Luzia, parada diante de uma pintura, sentiu um forte aperto no peito, uma sensação de que nunca mais veria seu marido. Desolada, olhou firmemente para a pintura de um homem velho vestindo uma blusa vermelha, cujos olhos penetrantes jaziam frios e fixos. Elias estava ali, a pouco mais de um metro de sua esposa, enquanto seu lamento o consumia, seguido da voz sussurrante e ininterrupta: “Venha..., venha... para a eternidade...!”

Preso sob o manto de tinta, em uma agonia latente, Elias ainda podia pensar, falar, gritar..., porém, ninguém podia vê-lo nem ouvi-lo. Nem ao menos reconhecê-lo, pois a imagem do quadro não passava de uma representação decrépita de um ser senil, de pele vazada, como a carne em putrefação.

Contudo, mesmo sabendo do seu silêncio eterno e que ela não podia ouvi-lo, balbuciou suas últimas palavras à sua amada:

— Perdoe-me...!

Hoje a casa está vazia. Não há presença humana desde quando Elias se aventurou por lá. O mato tomou conta de seus arredores e sobre seu esqueleto de madeira traças e cupins se banqueteiam. Elias, o homem que deixou se consumir pela ganância, agora trava uma luta em vão: adaptar-se à maldição de um espírito eternamente consumido pelas trevas.





   
Publicado no livro "Seleção de Contos Premiados" - Edição Especial - Junho de 2014