Marcel de Carvalho Ribeiro Dias
Rio de Janeiro / RJ
O adeus ao patriarca
A recepção foi digna do filho pródigo:
- Filho! - Disse, em meio a beijos e abraços, a mãe.
A mãe, não o Patriarca. E como poderia ser? Não
se lembrava de algum abraço entre os dois, mesmo quando
morava na casa – agora quase tão carcomida quanto
certamente estava o Patriarca.
Por isso voltara à casa de seu passado, depois de tanto
tempo. “Está nas últimas”, avisara a
mãe, “Talvez você não o veja mais vivo”.
E então estava ali, de volta ao passado, a uma rua de Olaria
que, passados anos! Ele quase precisou de GPS para localizar.
Por sorte, o taxista conhecia bem a área, e o entregou
são e salvo.
Depois dos abraços e dos afagos, era chegada a hora. “Ele
está no quarto, deitado. Agora só fica assim”,
- lamentou a mãe, emendando - “Ele nunca mais foi
o mesmo, desde que aconteceu aquilo com o seu irmão.”
Ao vê-lo, imaginou que fosse outro, jamais o Patriarca.
Não poderia imaginá-lo naquele estado, quase vegetativo,
num arremedo de consciência, o olhar vazio. Estava magro
e encarquilhado, contraste chocante com o Patriarca de outrora.
Desejou que tudo fosse como antes, que aquele que estava ali,
deitado, de repente voltasse a ser o Patriarca de antes, o senhor
que impunha a casa sua lei, tal e qual o Deus bíblico,
e que lançara o anátema ao filho perdido, indigno
de perdão por assumir quem era e o que desejava: a “bicha”,
nas palavras do Patriarca.
O anátema foi cumprido. O filho renegado abandonou a casa
do Patriarca e correu muitas terras – acabou indo morar
no exterior, e também descobriu o que era a vida, descoberta
que não faria se tivesse continuado naquele duvidoso Éden.
Descobrira que seu verdadeiro Éden era o mundo além
das fronteiras daquele portão. “Deveria agradecer
a ele por isso”, pensou o filho, com uma ponta de ironia.
Corrigiu-se. Mas seu rosto revelou o pesar de ver o Patriarca
naquele estado. Tristeza ou assombro, ou medo de antever o que
poderia acontecer a ele, fruto da semente transmitida pelo Patriarca.
Será que decairia da mesma maneira? Pensou.
Imaginado serem pensamentos pouco afetuosos, corrigiu-se. Continuou
a olhar para o Patriarca, irreconhecível, enquanto a mãe
ajeitava o travesseiro do Patriarca.
“Seu filho está aqui!”
O Patriarca despertou da quase inconsciência. Virou-se na
direção dele, e lançou-lhe um olhar vidrado.
Esboçou um sorriso, que saiu com dificuldade, assim como
a voz, fraca, mas emocionada:
- Meu filho!
O sorriso permaneceu, para impressão da mãe “Não
sorria desde que seu irmão...” e, assim, a flecha
da dúvida foi disparada, intencionalmente ou não:
afinal, o sorriso do Patriarca era dirigido a ele ou ao predileto
do Patriarca, o “homem de verdade”, o irmão
que enveredara pelos caminhos do crime e conhecera um triste fim,desaparecido,
sem que não houvesse mais qualquer esperança de
encontrá-lo?
Procurou afastar a questão, pelo incômodo que esta
lhe causava. Era bem possível que o Patriarca, já
sem muita capacidade de reconhecimento, enxergasse nele o irmão
morto, com quem ele se parecia nas feições, embora
as personalidades fossem tão diferentes.
Mas a pergunta continuou no ar, sufocante, dolorida. Quem o Patriarca
reconhecera?
A resposta não veio; veio, sim, um gesto que o surpreendeu:
o Patriarca, mesmo com muita dificuldade, estendeu-lhe a mão.
Mesmo sem saber se a mão era estendia para ele ou para
o irmão, ele fez algo que jamais poderia ter feito noutros
tempos – segurou a mão do Patriarca.
O contato não durou muito tempo, apenas o suficiente para
parecer uma eternidade. Nos olhos do Patriarca, lágrimas
brotaram dos cantos. “Ele não pode se emocionar muito!”,
advertiu a mãe, e o contato se encerrou. O filho, silenciosamente,
agradeceu à mãe. Nos seus olhos, também surgiram
lágrimas.
Saiu do quarto, junto com a mãe, com quem conversou, na
sala. Falou de suas novidades, ouviu as dela: como iam os netos,
dados pela irmã, a única que seguira a vida “normal”,
formara-se professora, casara-se, tivera filhos e tinha ido às
compras “Não demora!”, garantiu a mãe.
Dito e feito: minutos depois a irmã chegou. Quase deixou
as sacolas de compras caírem no chão ao ver o irmão.
‘Quanto tempo!”e o abraçou, apertado. Ele retribuiu
o abraço – afinal, sempre se dera bem com irmã
– e logo começaram a conversar.
O bate-papo estendeu-se e teve participação da mãe,
que só saiu da sala para dar os remédios ao Patriarca,
com o zelo habitual. Quando a fome, pouca, mas fome, chegou, já
havia um bolo preparado, dos preferidos pelos filhos, e pouco
mais foi necessário para saciá-los. A fome que tinham
era mais de se reverem, do contato restabelecido, que de comida.
Quando chegou a hora de ir – a viagem de volta estava marcada
– ele já se sentia aliviado. As companhias da mãe
e da irmã lhe fizeram bem, atenuaram o peso (ele não
podia negar: era um peso) de rever o Patriarca, o peso que sempre
fora estar perto do Patriarca, sempre, sempre...
Espiou pela porta do quarto. O Patriarca dormia. Os passos cuidadosos
– não queria fazer barulho – chegou perto e
o olhou, pela última vez, bem o sabia. Triste, mas agora
sem lágrimas, saiu do quarto.
Despediu-se da mãe e da irmã com abraços
calorosos, prometendo manter contato e recebendo delas a promessa
de mandar notícias, inclusive do Patriarca – ele
imaginava quais seriam as próximas notícias que
receberia sobre o Patriarca, e tomou o caminho de volta ao mundo.
A dúvida sobre quem o Patriarca reconhecera, se ele ou
o irmão já falecido persistiu, insidiosa, mas ele
a solucionou(ou ao menos imaginou ter solucionado) com uma resposta
que lhe pareceu alentadora: entre ele e o Patriarca o adeus já
havia se dado há muito tempo, desde o dia – irreversível
– em que se desentendeu com o Patriarca e cruzou o portão
da velha casa de Olaria em direção ao mundo, mas
imaginou, com sua visita, ter praticado uma boa ação:
graças a ele o Patriarca despediu-se do filho a quem não
pôde dar seu último adeus.
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