Adriano de Jesus Santos
Guarapari / ES
A vida no ponto
Mora em uma cidade mediana de um estado que até pouco tempo
era tido como um primo pobre da região mais rica e influente
do país. Em uma avenida muito movimentada e enfeitada por
uma árvore a cada ciquenta metros ao longo de sua longa
extensão. Está tão bonita e esplendorosa
porque faz pouco tempo em que passou por reformas que de tão
duradoura parecia a construção de algum shopping.
A própria avenida era um shopping a céu aberto.
Destino de moradores de todas as partes do município atraídos
pela variedade de produtos e baixos preços. Muitos comerciantes
tinham o hábito de por aparelhos de som em volume alto
e em alguns momentos do dia entregar microfone a locutores, tornando
a rua um insuportável local de disputas desesperadas por
clientes.
Constantemente aquela avenida está nos noticiários.
Quando se trata de uma data comemorativa, o destaque só
poderia ser o volume de vendas no comércio. Em qualquer
outra época do ano noticia-se com frequência a violência
corriqueira e seus efeitos maléficos.
Mora naquela avenida, ainda que ela esteja longe de ser um local
propiciamente residencial. Mora em frente a um ponto de ônibus
e peruas clandestinas e seu local favorito é a cadeira
do papai localizada na varanda que lhe dá uma visão
privilegiada. Aposentado a cinco anos, comprara aquela casa ao
receber o fundo de garantia da única empresa em que trabalhou
ao longo de sua vida de empregado. Foram quarenta anos em uma
fábrica de tecidos, sendo os trinta últimos como
gerente e os dez primeiros como auxiliar e sub-encarregado.
Da sua cadeira, ele já presenciara muitas histórias,
algumas dramáticas, outras cômicas. Para algumas,
ele se sentira abalado, para outras nem tanto. Para as histórias
mais escandalosas, tinha o costume de levantar-se imediatamente
e ir contar a sua filha e dois netos o mais novo conhecimento
adquirido naquele ponto. A filha ouvia atentamente, os netos apenas
ouviam, principalmente quando o mais novo estivesse ao play station
e o outro lendo qualquer livro de aventura.
Daquela cadeira talvez ele tenha aprendido mais do que todos os
anos em que esteve dentro de faculdades ou trabalhando brilhantemente
naquela fábrica. Não se importava com os comentários
ofensivos que alguns entre seus próprios parentes diziam
a respeito dele, sobre o seu interesse em ficar observando a vida
dos outros. Ele apenas tinha o privilégio de ter em frente
a sua casa um laboratório de análises sociais a
céu aberto. Aquele assíduo pesquisador não
tinha hora do dia para começar seus trabalhos, mas é
óbvio que ele preferia os horários de pico no comércio
e no ponto.
O ponto é um resumo. A maioria dos necessitados por ônibus
coletivo, não tem o hábito de fazer comentários,
mas alguns outros escancaram seus sentimentos revelando alegrias
e indignações. E por mais discretos que eles sejam,
por mais contidos que alguns estejam em seus sentimentos, dificilmente
passam despercebidos às observações do ocupante
da poltrona por detrás daquela grade. Bastava ele estar
lá.
Os dias mais produtivos para ele eram os de greve de motoristas
e cobradores. Ponto lotado, nervos à flor da pele e línguas
afiadas. Foi em um dia desses que um fato marcou a sua história
recente. Uma garotinha habilidosamente escalou a grade se agachou
por detrás de sua poltrona e perguntou em sussurros se
poderia ficar ali. Fugia de um grupo de sete adolescentes que
a havia acusado de tê-los entregados a um guarda no momento
em que se preparavam para executar um plano. Empurrara as pessoas
no ponto. Poderia pedir ajuda a qualquer uma delas, mas preferiu
pular a grade. Quando perguntada por que resolveu fazer o mais
difícil, ela respondeu dizendo que aquela grade a protegia.
Dias de reflexão e a percepção de que por
mais que observasse, lesse sociologia ou algo afim, nunca ele
saberia com exatidão a vida naquele ponto ou naquela avenida.
Desde sempre esteve protegido por um emprego estável e
um salário que supria as suas necessidades. Ele jamais
precisou esperar em um ponto de ônibus. Observar é
uma tarefa muito mais cômoda porque intervir exige habilidades
e outras condições que nem todos possuem.
Só se pode conhecer a vida no ponto quem está no
ponto. A vida no ponto não se limita àquele estático
espaço geográfico. A vida no ponto significa também
experiência de vida naquela vida. No ponto não existe
grades e nem muros. A vida como ela é. Aquele senhor entendeu
as limitações e se limitou ainda mais ao diminuir
o tempo de observações. É que a atitude daquela
habilidosa garotinha revelou o quão frágil era a
sua grade. Quando era administrador ele observava para intervir.
Comprometia-se. Responsabilizava-se e era responsabilizado. Ao
fim, concluíra que os tempos eram outros, a empresa era
outra e o administrador não era ele.
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