Jomar Pereira das Neves
Chapecó / SC

 

 

Ficamos entendidos?

 

 

          

Passei toda a infância e parte da juventude entre os bairros da Gamboa e de Santo Cristo, na Vila Portuária do Rio, um lugar de gente pobre, na grande maioria estivadores. E naquele mundinho que revivo agora, moravam pessoas íntegras, apesar de pouco ou quase nenhum estudo.
Havia uma relação de quase parentesco entre os moradores. Nenhum grito de “ai!” ficava no anonimato como também nenhuma porta ficava trancada. Porém, uma pequena farpa histórica me marcou pra sempre: Seu Bira.
Seu Bira não era estivador – diziam que era gráfico – saía de casa bem cedo e voltava no fim da tarde. Morava sozinho desde que enviuvou. Vestia sempre um paletó cinza, calça preta, e carregava uma pastinha onde provavelmente levava a marmita e havia também sempre um livro embaixo do braço.
Só que Seu Bira, diferentemente dos outros homens do bairro, não parava para conversar com ninguém,  embora cumprimentasse a todos com discrição. Também não andava no meio da calçada, mas sim pelo meio-fio (o ponto mais afastado da calçada), até chegar em casa. Foram anos assim.
Lembro que havia um consenso entre os adultos que as crianças não deveriam falar com Seu Bira.  E todos nós, garotos, alimentávamos, talvez por isso, a curiosidade sobre aquele figura do bairro.
Meu pai me disse uma vez: - O Bira é um bom sujeito. Mas é comunista. Por isso é melhor ficar afastado dele.
Pra mim isso não dizia muita coisa. Comunista?! Mas, afinal, o que era comunista?
Meu pai nunca me explicou por medo ou porque talvez não soubesse explicar. E conversa ficou por ali.  Até que um dia Seu Bira sumiu e ninguém soube exatamente o que aconteceu. A casa ficou fechada, nenhum parente apareceu para dar notícias. Nadinha.
Passaram-se uns três anos até que um carro bonito chegou lentamente, subiu a calçada e estacionou no portão do Seu Bira. Desceu um moço elegante, roupa de doutor, e um outro com terno e gravata, com jeito de advogado.
Nós, curiosos, nos acercamos dos moços enquanto o de terno perguntava ao doutor: - É aqui mesmo que ele morava? – E depois virando-se para nós: - Quem é a pessoa que toma conta do time de garotos aqui da rua?
Em coro infantil:
- É Seu Jaiminho!!!
- Precisamos falar com ele! Podem chamá-lo?
Logo levamos Seu Jaiminho ao encontro deles e ouvimos exatamente isso:
- Sou o Doutor Gerson Dutra, advogado que está cuidando do inventário do senhor Ubirajara Saint’clair de Aguiar – o “Seu Bira” como vocês conheciam -, proprietário desta casa e que morou aqui durante dez anos. Este aqui é o Dr. Victor, médico, filho e herdeiro único do Seu Bira. Talvez vocês não tenham sido avisados, porém Seu Bira faleceu faz três anos, mas antes de morrer fez questão de deixar em testamento aquele terreno grande que fica logo depois da esquina, para o time de garotos para que ali possa ser construído um campinho de verdade para vocês não se arrisquem mais jogando futebol na calçada. Um campinho de verdade. O Dr. Victor, filho e herdeiro do “Seu Bira” concorda com a doação e está disposto a ajudar vocês no que for necessário. Tudo feito de acordo com a Lei.

...

Pois até hoje eu lembro do Seu Bira. Ele sabia que as pessoas "tinham medo" dele, por isso evitava participar da comunidade, caminhando sempre de cabeça baixa pelo meio-fio... Acho que o terreno que ele doou pro nosso time de futebol foi um recadinho mais ou menos assim: "sabia que vocês tinham medo de mim, mas eu gostava muito de vocês e dos pais de vocês apesar de tudo."

 

 

 
 
Poema publicado no livro "Contos Premiados" - Edição 2019 - Abril de 2020