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Anchieta Alves de Santana
Uruçuí / PI

 

Paixão envenenada

 

        

Raitila Soares, mulher corpo de violão, olhos pretos e um andar prequeté que deixava qualquer marmanjo boquiaberto e enlouquecido, foi enamorada de Manuel Belisco; um jovem morgado, estudante que sonhava cursar Medicina e ser um médico para ajudar aos mais necessitados. Seria o único herdeiro da família dos Mulatos. Ele não chegou a realizar seus sonhos por ter falecido nos verdes anos da adolescência, vitimado de uma febre bruta demais. Febre que mais parecia uma lâmina que o degola impiedosamente. Com ele, foi-se um sonho cheio de humanidade e valores significativos.

 A partir daí, Raitila, despida de qualquer jactância, foi lançada num mundo saudosista que a levou a sérias complicações depressivas. Seus dias passaram, durante algum tempo a serem longas e tediosas reflexões; reflexões que choravam como ninguém. Foi enrustida nessa camisa de força que a torturava, que ela passou a acreditar que existe uma sina a ser rigorosamente cumprida por cada pessoa e, nem sempre e/ou nunca, esta pode ser alterada: é o destino. E que ela –Raitila - não deveria deserdar o próprio alento espiritual pela casualidade acontecida na vida do jovem sonhador e pretendido; e por isso, sua vida não deveria ser sucumbida por aquele estado de coisas. Coisas que a tornavam frágil e sem vigor vital. A partir daí, passou a considerar o estado de espírito vivo - alento que não dorme - como uma necessidade para voltar a cantar a vida. A vida que se encanta com cada momento de fôlego divino. A vida que nunca deixa de se abraçar com a filosofia errante que traz uma mensagem de fé e esperança.

Mas a jovem, mesmo tomada por estes pensamentos, voltou-se para o seu emaranhado e confuso mundo interior e não quis mais saber de enamorados. Apesar de sua beleza física e interior. Sempre recebia boas propostas de jovens do seu convívio. Não queria ser enamorada de outro jovem. O perfume e  o calor de Manoel Belisco eram para ser eternizado em seu corpo, em seus sonhos e em seus desejos. Embora filosofassem que a vida não é para ser vivida na solidão. Mas ela não estava só. Era ela e o sonho, o desejo enlouquecido... O ardor da carne, os gestos, a necessidade de um carinho, e mais um paiol de coisas essenciais a um corpo dependente. As impressões do enamoro frustrado pelo destino, ainda permaneciam vivas. Vivas e ardentes. O som da voz e o perfume natural de Manuel Belisco, ainda ecoavam naquele corpo de menina-mulher faceira. Num ar de desvairo –após a morte do jovem paquera-ela chegava a se trajar com o que havia de mais fino tecido, para um encontro amoroso. Ia ao jardim do quintal e, sob as goiabeiras, sentava-se num banco improvisado e, com uma face, agora pálida de saudades espremidas pelo tempo, esperava Manuel Belisco aparecer por trás das laranjeiras. Esperava que esperava. Ficava horas e mais horas ouvindo o cantar dos bem-te-vis.  Como Manuel Belisco não comparecia, ela se consolava num monólogo longo e triste, dizendo que ele, naquele dia estava muito ocupado com seus estudos.  Com certeza, no outro dia, ele daria uma bela satisfação e a encheria de beijos e abraços ardentes de amor. E assim, the following day passava a ser aguardado com grande ansiedade. E nessa rotina, dia após dias, ela se pegava na repetição da mesma cena, do mesmo cenário, da mesma dor... O seu diário passou a ser um confessionário de eternos lamentos e desejos. Dentre outras anotações passionais, uma dava conta da seguinte mensagem:

 “Amor, minha grande e infinita paixão, o calor do seu corpo, a ardência química dos seus beijos...mexem com a minha estrutura feminina. Tenho plena certeza da não existência de um outro homem como você. Estou, como sempre, ansiosa pela sua volta. Os meus ouvidos ainda querem, sempre, captar aquela tua declaração de amor.
(...) Amado, já é tarde, e o meu corpo parece nervoso e a minha concentração está fugindo em virtude de sua demora...” 

Numa manhã domingo, sob o olhar penoso de caseiros, ela, metida num traje que deixava à mostra suas curvas sensuais, começou a colher as flores mais belas e perfumadas do jardim, para entregá-las ao amado que nunca chegava. E, com o passar dos dias, já não mandava mais cartas amorosas; não fazia anotações em seu inseparável diário...já não sorria nem acreditava no retorno do amado. Os cabelos já não recebiam os mesmos tratamentos. 

Esta era uma rotina de quase desvairo que só foi superada com uma determinação própria e  a ajuda de amigos e da família.

Cinco anos depois, Raitila, que parecia ter superado a saudade do amado, buscou um passatempo para os longos e sonolentos dias. Aos poucos, passou a colaborar com o povo mais pobre que fazia parte da irmandade do bairro e a preparar as novenas domingueiras que aconteciam na capela Santa Madalena. Mas, numa certa manhã de domingo, ao olhar o jardim e o banco onde costumava passar horas a fio com seu amado, bateu-lhe uma saudade intensa que a deixou, outra vez, em desvairo passional.

 

 

 
 
Conto publicado no livro "Contos de pura sedução" - Janeiro de 2017