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 Rubens Alves Ferreira
Taguatinga / DF

 

Companheiras

Dionísio lembrava-se que ela aparecia de manhã no seu quarto, ao lado da cama – explica-se o “seu quarto” por que solteiro convicto acumula manias durante sua vida sozinho, e mesmo quando vive uma relação manifesta um comportamento ou tudo muito arrumadinho ou o contrário, se arrumarem sua bagunça ele se perde. Pois bem, ela aparecia desesperada, com as mãos na cabeça, quase chorando, com um olhar de súplica, reclamando e demonstrando não ter ânimo para nada, nem para as coisas mais simples, só um mal-estar e uma ânsia e infelicidade acachapante. Lembrava dela namorando o vazio na porta da varanda ou da janela do apartamento. Lembrava-se também de outras pessoas, naquela época em que depressão, para os ignorantes, era fricote de “sem o que fazer”. E podem incluí-lo no rol dos ignorantes.
Nossa! Ainda bem que a certa altura, ele e amigos comuns começaram a prestar atenção; e, a partir de uma reportagem de revista, entrou em contato com um psiquiatra que assinava matéria sobre o assunto. Tal profissional indicou um colega de Brasília. Ela começou o tratamento como cobaia. Tratava-se de medicamento novo com efeitos desconhecidos. Depois de assinar as autorizações, começou a tomar os remédios. Logo no primeiro dia, como Dionísio já desconfiava, ficou atento às reações dela. Achou engraçado e ao mesmo tempo chocante, quando logo no primeiro dia a noite, ela sentou-se no sofá em frente à televisão e olhava além da mesma. Os olhos esbugalhados e uma expressão de quem estava perdida e impressionada com alguma coisa. Parecia não estar entendendo nada, impotente diante da situação. Coitada! Ainda bem que Dionísio teve a decência e um lapso de humanidade e procurou tratamento para ela. Depois de certo tempo, cada um procurou viver no seu canto e outras companhias se sucederam. Ela ainda toma remédios para depressão e para outros achaques, mas a qualidade de vida é sem dúvida outra, ainda mais que não se descuida com relação à saúde.
Depois de alguns anos Dionísio começou a manifestar os sintomas de depressão. Ele não tinha certeza do que se tratava, embora desconfiasse. Nessa época o que permitia que ele desconsiderasse o fato e fosse adiando a procura de tratamento médico, apesar de ser uma pessoa instruída e de boa índole) era outra grande companheira que havia surgido. Constante e presente todos os dias, fazia companhia e auxiliava até na hora da insônia, assistia os filmes com ele e costumava acordar largada e esquecida do lado pelas madrugadas e manhas. As vezes era colocada para fora de qualquer jeito, como se joga qualquer líquido na privada. Como tudo tende a se desgastar, com o passar do tempo, acabou por vir a prejudica-lo (no caso o prejuízo era só para ele). Como toda relação tem seus perrengues, apesar de disfarçar temporariamente os efeitos do mal, este paulatinamente vai se apossando da situação e comprometendo todo o resto. Essa companheira que antes lhe auxiliava inocentemente e de forma lúdica, com o tempo tornou-se possessiva (tal como viúva ciumenta) e desestruturadora. Atrapalhava seu trabalho, sua vida em família, seus estudos e tantas outras coisas que se dispunha a fazer. Ela queria atenção total, integral.  
Certo dia, fora das “invernadas”, Dionísio ao me encontrar em um “shopping”, arrastou-me para a área de alimentação e pôs-se a falar dos últimos tempos:  “Sabe, Porfírio, o que é você estar andando e de repente perder os sentidos ? – justamente na conjunção do destino físico e psicológico –  o local onde se encontram a perda dos sentidos e o desnível de uma rampa na calçada. Cair de cara no cimentado grosso, quebrar o nariz e quase se afogar em uma poça de sangue. Ver vultos e vozes se movimentando ao redor, ir para o pronto socorro furando a fila, tomando o lugar de pessoas com problemas sérios e não inconsequentes. Discutir com o médico em época de greve, não deixar tirar a chapa da cabeça, levar a agulhada do soro – logo eu que sempre tive terror a agulhas – e retomar os sentidos muito tempo depois, sabe-se lá quanto, com algum parente segurando um frasco de soro acima da sua cabeça no corredor do hospital. Isso tudo sem nada ver, sem nada lembrar ou sentir dor”. – Ele me olha para verificar minha reação. Conversamos por algum tempo...
Situações assim começaram a se tornar corriqueiras e às ressalvas morais, físicas se somavam todo tipo de desesperança e dor. É difícil administrar a quantidade de besteiras que se faz nessas circunstâncias. Para uma ou duas semanas de descontrole, são outras tantas para se recuperar e pôr as coisas em ordem.
Dionísio, enfim, começou um tratamento, por intervenção minha, de amigos e dos irmãos. Passou a sentir o peso das medicações: disse certa vez que não sabia o que era pior, seu estado anterior ou as noites insones, os enjoos, dores de cabeça, formigamentos, calores, suor frio, pesadelos (quando conseguia cochilar), inapetência sexual, falta de apetite, entre outros. Mesmo assim foi tocando em frente por que redescobriu que uma coisa que sempre vale a pena é a liberdade. Desconfiou disso... na verdade. Por que afinal não sabia o que fazer com essa tal liberdade. Quem leva a vida ou é levado por ela, sempre prisioneiro de ideias, situações ou pessoas, acha-se perdido sem os grilhões – é uma leveza que não se sustenta no solo –.  Pensou que a liberdade seria poder aproveitar-se de tudo; respeitando o seu espaço e o dos outros. Apesar dos pesares ele sabe que é dono do seu estado mental e físico. Está no controle por que sabe do que se trata. Agora, em vez das companheiras anteriores, sua nova companheira era a solidão –  musa cruel e pesada – mas por opção consciente e temporária. Precisava conviver com ela por algum tempo. Deixar as coisas se encaixarem, tudo tomar lugar e sentido.

 

 
 
Conto publicado no livro "Contos de quem passa... de quem entra... de quem sai... " - Dezembro de 2015