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José Anilto dos Anjos
Ribeirão Pires / SP

Há vida além do caminho

Como sempre, Elisa caminhava apressada para percorrer o trecho entre a estação de metrô e o prédio onde trabalhava. Enquanto caminhava, organizava mentalmente o serviço do dia, calculando quanto tempo deveria ocupar com a análise de cada relatório, quais argumentos seriam mais adequados a cada um, para convencer seu chefe o mais rapidamente possível e evitar longas discussões. Ultimamente percebia que ele olhava mais detalhadamente suas análises, e procurava esticar as conversas para assuntos além do serviço, o que a deixava incomodada. Gostava da precisão e rapidez em seu trabalho, deixando de lado digressões inúteis. De vez em quando felicitava a si mesma pelas soluções criativas que produzia.
Já estava nesse emprego há um ano, e seguia uma rotina rígida. Uma caminhada de seu apartamento até o metrô, depois uma pequena caminhada do metrô ao escritório, pouco mais de quinhentos metros imersa em pensamentos. Mas nesse dia sua rotina foi quebrada por dois rapazes que a agarraram e levaram-na a um beco, o qual ela nunca notara. Quis gritar, mas sua voz foi calada por uma faca em sua garganta.
- Fique quieta, nem um pio!
Ela obedeceu. Apavorada, deixou-se levar até um canto escuro. Enquanto o rapaz da faca a mantinha imobilizada, o outro puxou sua bolsa. Ela fechou os olhos. Apesar de temer por sua vida, nesse momento lembrou-se dos rascunhos que estavam ali dentro. Teria que refazer tudo se os perdesse. Junto com o medo veio a irritação por aquela situação inconveniente.
Mal percebeu quando o rapaz da faca foi jogado violentamente contra a parede, onde permaneceu aturdido. Em seguida, o outro rapaz largou sua bolsa e fugiu dali. Ela quis correr, mas suas pernas não obedeciam.
- A senhora está bem? Senhora?
Demorou um minuto para organizar novamente seus pensamentos, e então percebeu que um mendigo falava com ela. O rapaz da faca havia se recuperado, e também fugira.
- Como? Ah, sim, estou bem…
- Não se preocupe, são só dois vadios. Não vão mais incomodar.
- Eu… bem, obrigada. Não sabia que esse tipo de gente andava por aqui.
- Estão em todo lugar, só esperando uma oportunidade de pegar alguém distraído.
O mendigo pegou a bolsa do chão e entregou para ela.
- Pronto. Foi só um susto. Vá com Deus.
- O senhor não se machucou, não é? Como posso recompensá-lo pela ajuda?
- Não precisa. Vá em paz. Eu fico por aqui em paz também, como sempre, nesse meu cantinho.
- Eu nunca o vi por aqui.
- Moro aqui há uns cinco anos. Sempre nesse beco, ou ali, na praça. É meu mundo. E a senhora passa por mim todos os dias. Faz um ano…
- Como sabe? E eu realmente nunca o vi.
- Pessoas como eu costumam ser invisíveis. É normal. Mas eu observo as pessoas. Algumas eu não esqueço. Fica na memória.
- E por que se lembra de algumas?
- Não sei. Pode ser várias coisas.
Ela retornou à calma costumeira, e como não queria mais ficar ali conversando com um mendigo, ajeitou sua bolsa no ombro, alisou a roupa e o cabelo com gestos maquinais. O mendigo pegou o saco de bugigangas que estava encostado a uma parede, e saiu do beco. Ela saiu logo depois. Encontrou o mendigo logo à frente, esperando uma oportunidade para atravessar a rua.
- Mais uma vez, muito obrigada. Graças a Deus o senhor estava por perto. E o senhor acertou quando disse que faz um ano que passo por aqui. Só não entendo como se lembra de mim.
- A senhora caminha sempre muito séria. Parece sempre preocupada com alguma coisa. Mas vez ou outra deixa escapar um sorriso. A senhora é muito bonita, e seu sorriso é lindo. Gosto de observar a senhora passando, e quando vejo um sorriso seu, isso ilumina meu dia.
Finalmente o trânsito amainou, e o mendigo atravessou a rua, indo se instalar na praça do outro lado.
Ela não sabia o que fazer. Será que deveria considerar o elogio do mendigo um atrevimento? Mas ele a ajudara. Por um minuto ficou pensativa. Então olhou em volta.
E pela primeira vez enxergou a praça. Gramado, bancos, jardins. Um balanço, escorregador e uma pirâmide de tubos para as crianças. E muitas pessoas. Gente que ia e vinha. E era um dia ensolarado. A luz refletia nos vidros dos prédios, e a rua parecia multicolorida. O ruído dos carros harmonizava-se com a tagarelice dos passantes. Ela enxergou o caminho que fazia todos os dias. Havia vida além do caminho. E vida em abundância!
Quando chegou à porta do prédio onde trabalhava, viu um casal despedir-se aos beijos. E o olhar do rapaz lembrou o olhar do seu chefe. O mesmo sorriso tímido. Lembrou-se do menino da copiadora que sempre lhe oferecia um chá. A estagiária que lhe convidara para almoçar no dia anterior. Mas como sempre ela não tivera tempo. Como sempre ela evitara as pessoas. Assim como não via o mendigo, ela também não via seus próprios companheiros. Seu bom dia era o padrão da cortesia, nada mais.
Abriu a porta do escritório e lá estavam eles. Dessa vez enxergou um a um, até o chefe, com seu sorriso tímido. Sentiu-se abraçada, e dessa vez seu bom dia foi acompanhado por um sorriso espontâneo.
E foi um dia foi maravilhoso…

 

 
 
Conto publicado no livro "Contos de quem passa... de quem entra... de quem sai... " - Dezembro de 2015