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Renato Dutra
Taubaté / SP

 

O Senhor dos Papéis

  

  

A Sociedade Do Papel.
É normal crianças receberem notícias importantes de forma brusca. No caso de Zeca não foi diferente, ele, ainda com seis anos, brincava na varanda quando sua mãe chegou com a notícia:
-Você começa a estudar este ano, Zequinha.
José Carlos primeiro ficou atônito, depois curioso, e só mais tarde, muito assustado com o novo mundo que enfrentaria.
Após um mês, Zeca entrou na primeira série. Na escola percebeu que o novo mundo não era tão assustador, mas poderia ser muito mais perigoso do que o esperado. Nesse novo mundo, Zeca percebeu a existência de seres monstruosos, muito parecidos com ele, só um pouco maiores, capazes de devorá-lo, ou coisa pior: colocá-lo no cesto de lixo. Ele só não percebeu que, com o passar do tempo, se tornaria igual a eles. Era a evolução natural.
Papel foi sua maior descoberta. Ele percebeu o poder e o perigo desse objeto. Nesse perigoso mundo o papel era algo impossível de ser evitado, nele sua presença era registrada, resumindo sua presença a um simples "presente", nele levava para seu mundo tarefas, que ocupariam seu tempo e, no papel, Zeca tinha a difícil missão de transcrever seu conhecimento em algo estranhamente denominado "prova".
O tempo passou, Zeca chegou ao último ano. O papel já se tornara uma rotina. As temidas provas não eram mais problema, não que ele tenha descoberto a importância do estudo; mas, descobriu que um papel, bem pequeno, muito pequeno para que a professora não o pudesse ver, ajudaria a passar nesses testes que acabavam não testando nada. Mas o papel não servia apenas para provar ou burlar, ele podia ser usado para colecionar figurinhas ou ser usado para enviar mensagens, do tipo "Te pego lá fora", ou "Quer namorar comigo", que recebiam como resposta outro bilhete "Não". O papel também podia ser usado como uma arma mais direta, amassado e untado com saliva (bolinhas de papel).
Nessa época, Zeca descobriu a importância de outro tipo de papel, o dinheiro que era dotado do mágico poder de transformar desejos em realidade. Porém, esse papel era difícil de conseguir "deve ser por isso que o mundo inteiro vive em função dele" pensou Zeca.
          Com a adolescência veio também a curiosidade e o desejo pelo sexo oposto, porém Zeca era só um pirralho e o jeito foi apelar para papéis especializados. Isso causou constrangimento.
-Meu garoto, esta revista eu não posso vender para você. Mas busto por busto, será mais educativo a compra desse livro de história, com o busto de Minerva e muitas outras coisas legais para um rapaz tão jovem _ Essa foi a resposta dada pelo dono da banca de jornal a Zeca, em relação à compra do papel especializado.
A adolescência, assim como a infância, veio, deixou marcas e se foi. Com a chegada da fase adulta, Zeca descobriu que vivia numa sociedade dominada pelo papel: era um papel para provar que existia, outro para dar direito a voto, mais um para permitir que dirigisse, e muitos outros papéis, um para cada coisa que quisesse. Não poderíamos esquecer o papel dotado de poder de compra. Nesta sociedade dominada por papéis, Zeca se tornou um mercenário.
Zeca descobriu a existência de um papel que poderia render-lhe muitos papéis com poder de compra, porém esse papel, conhecido como diploma, custava caro. Convencido de que possuir um diploma não seria gasto, e sim investimento, Zeca retornou aos papéis recheados de conhecimento (também conhecidos como livros) para recuperar o tempo que perdera no colégio.
Passar no vestibular não foi difícil, não mais difícil que pagar a matrícula, nem mais difícil que conseguir todos os documentos. Pagar a matrícula foi só o primeiro problema de Zeca. Problema que a cada mês aumentava. Por isso, começou a trabalhar.
As Duas Torres
Zeca começou a trabalhar num escritório como ajudante geral. Esse lugar parecia uma Torre de Babel. Todos queriam algo, nem todos falavam a mesma língua. Existiam aqueles que só falavam a língua da produtividade (raridades), outros só falavam língua do puxa-saquismo e a maioria falava a língua da preguiça. Mas o dialeto pelo qual todos conseguiam se comunicar era o dos papéis dotados de poder de compra.
Onde Zeca trabalhava era uma Torre de Babel; porém, não a única na vida dele. A faculdade era outra Torre. Lá existiam pessoas de todos os campos da ciência, o que não garantia o entendimento entre eles. Todos estavam preocupados com seus próprios umbigos e nem percebiam a existência de outras formas de conhecimento. Porém (sempre há um porém) nessa outra torre também imperava o "santo dialeto" dos papéis dotados do poder de compra, que para o povo na mesma situação de Zeca não passava de uma utopia. Segundo a lenda (que de lenda não tem nada), todos os universitários são desprovidos dessa espécie de papel.
O retorno
O convívio nas duas torres fez que Zeca se tornasse cada vez mais mercenário isso evoluiu para um grau alto, fazendo-o apresentar sintomas concretos dessa doença: desejo de guardar dinheiro, necessidade de não sair, necessidade insuportável de ser promovido, insensibilidade, petrificação do coração, satisfação em contar dinheiro. Isso fez que Zeca (agora conhecido como senhor José Carlos) fosse promovido na torre onde trabalhava e se formasse na qual estudava, ganhando muito dinheiro.
Certo dia, José Carlos ia ao trabalho em seu carro zero quando foi abordado por um menino de doze anos que anunciou o assalto. José Carlos, assustado, saiu queimando pneu. Só que ele não esperava fato de o menino atirar nele durante a fuga; porém o menor atirou e acertou o pescoço de José, que morreu antes mesmo de ser socorrido.
José Carlos, Zeca ou Zequinha, tanto faz, do papel veio e ao papel retornou. Um dia teve sua chegada ao mundo registrada em um pedaço de papel, sua certidão de nascimento, e hoje sua curta existência não passa de mais um papel, seu atestado de óbito. Durante sua vida ele lutou para ter poder e acesso a todos os tipos de papéis, porém não conseguiu cumprir seu papel mais simples: ser feliz.

 

 

 

 

 
 
Conto publicado no livro "Contos de quem passa... de quem entra... de quem sai... " - Dezembro de 2015