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Renata Moreira da Silva
São Paulo / SP

 

O pesar da alma

 



Um raio de luz atravessando uma fresta pela janela anunciava mais um dia, mas eu estava cansada demais para me levantar. Decidi ficar ali, os acontecimentos da noite passada ainda ferviam em minhas lembranças.
Às vezes eu mesma me perguntava o porquê ter escolhido aquela vida. Em meio a tantas figuras diferentes eu escolhi uma que nem sempre me permite olhar no espelho.
A lembrança daquela noite trazia aquele homem me possuindo de uma forma brutal, desrespeitando meu direito de não querer. Não tinha intenção alguma de trabalhar. A saudade da família, o arrependimento de não ter feito diferente sugaram minhas energias, então, decidi sair para pensar um pouco.
Caminhava pelas ruas, ora encontrava uma colega de trabalho, ora encontrava um olhar que me discriminava. Notei que estava sendo seguida. Pude reconhecer aquela pessoa, era um cliente que sempre se dizia encantado por mim. Disse-me que estava a fim de um programa e não aceitou quando lhe disse que não estava em serviço.
Ele, tentando me convencer, me ofereceu o dobro do que eu sempre lhe cobrava e me disse que estava só e que precisava de mim naquela noite.
Pedi a ele que entendesse, eu não tinha nenhuma condição de trabalhar, estava de folga e não adiantaria tentar me convencer. Agradeci a oferta e continuei o meu caminho.
Já havia caminhado por três quarteirões quando, de repente, um carro violentamente parou ao meu lado e aquele homem saiu e, com uma arma, me obrigou a entrar.
Fomos para um lugar distante, eu temia o que poderia acontecer. Ele me obrigou a sair do carro, ao redor não se via nada.
E foi no meio do nada que aquele homem me violentou. Eu sentia dores horríveis e cada palavra obscena que ele falava, cada tapa que acertava o meu rosto, me fazia desejar morrer. Com uma faca ele machucou meu corpo. Não sei quanto tempo durou toda aquela agressão e nem sei como tive forças para pedir ajuda quando ele se foi.
Fui levada a uma delegacia, mas, como alguns policiais já me conheciam, não acreditaram na minha história.
Fizeram muitas brincadeiras e até me perguntaram o quanto eu havia cobrado para que um cliente fizesse aquilo comigo. Depois fui levada para um hospital onde cuidaram das feridas e colheram sangue para alguns exames.
Sempre tive muitos clientes, cobrava por aquilo que estava a fim de vender, sempre fui respeitada. Ele era o cliente que mais me procurava, me tratava bem, era carinhoso. Às vezes eu estranhava quando ele me pagava somente para um cinema ou para conversar. Já cheguei a imaginar que ele pudesse estar interessado por mim, mas como aqueles programas eram agradáveis nunca procurei me afastar. Em certos momentos eu até sentia carinho por ele, afinal, independente do tipo de mulher que sou, sempre desejei alguém que me tratasse bem, que me seduzisse e me encantasse e ele sabia fazer tudo isso.
Era um cliente especial, algumas colegas brincavam pedindo-o emprestado quando tinham que encarar alguns clientes complicados.
Mas foi ele, quem me cobria de atenção e carinho, que invadiu meu espaço, não respeitou minhas vontades e mais do que violentar meu corpo, ele violentou a minha alma.
Meu corpo dói, alguns cortes ainda sangram, mas estou sem coragem de trocar os curativos. Não tive coragem de ver meu rosto no espelho, minha face ainda arde. Minha alma, nem sei como se encontra deve estar mais quebrada que meu corpo.
Sei que muitas pessoas zombariam, como aqueles policiais, afinal o que é uma prostituta estuprada? Nada, não é? Afinal ela transa com tantos... Mas ele não tinha esse direito. Eu não queria!
Não sei se algum dia eu conseguirei perdoar. Não sei se me olharei no espelho novamente. Confesso que sem sei se quero continuar a viver.
Pergunto-me se eu tinha o direito ao respeito. Mas eu sou como qualquer pessoa, eu também sinto as coisas. Eu senti as dores, eu senti o peso das palavras, eu tive medo e nojo.
Que mundo é esse, onde e uma noite em que eu queria ficar com minha família em minhas lembranças, que eu queria ver a lua e aprender a me amar, alguém, sem direito violentou o meu direito?

 

 
 
Conto publicado no livro "Contos Selecionados de Grandes Autores Brasileiros" - Maio de 2016