Primeira vez neste site? Então
[clique aqui]
para conhecer um pouco da CBJE
Antologias: atendimento@camarabrasileira.com
Produção de livros: cbje@globo.com
Contato por telefone
Antologias:
(21) 3393 2163
Produção de livros:
(21) 3547 2163
(21) 3186 7547

Cleni Maria Guimarães do Livramento
Capanema / PA

 

Escravo da liberdade

 

Tive a honra de conhecer um dos sobreviventes da crueldade de certo Coronel Mamédio Bentes, que em seu interessante depoimento, relatou que esse coronel, temido por todos, possuía muitos hectares de terra, donde extraía  grande quantidade de madeira.
O nome do interlocutor dessa história é Clemente, e as pessoas por não conseguirem pronunciá-lo corretamente, o chamavam de “Quelemente”, ou melhor: Quelé, como ele gostava de ser chamado. Pescador aposentado, homem miúdo, dono de um olhar perspicaz, bem-humorado e bastante comunicativo, encontrei-o durante o período de férias, nas minhas andanças à beira da maré. Estava mesmo à procura de histórias de pescador, reais ou irreais (dependendo de quem queira acreditar).
Ao me aproximar, tive a cautela de esclarecer que era professora, também aposentada e gostava de escrever histórias contadas pelo povo. A princípio, falamos de coisas corriqueiras, por exemplo, como apanhar turu, pescar e preparar sarnabi e outros mariscos.
Enquanto a maré enchia, em pé, posicionada ao seu lado, diante de meu olhar atento a cada palavra que ele dizia, Seu Quelé, começou a falar com naturalidade de um fato que lhe ocorrera há muitas décadas, como se estivesse contando a história de outra personagem, garanto que um ator profissional não conseguiria representar tão bem o papel, quanto ele próprio que vivenciou.
Não vi em seu rosto nenhuma expressão de tristeza ou rancor. Pude observar, foi gestos de deslumbramento e bravura. Contou-me  logo que formou família, por não ter como mantê-la no lugar onde morava, resolveu arriscar um emprego numa fazenda pra bandas de Jarinai, ouviu falar que pagava muito bem seus trabalhadores. Deixando mulher e filho, seu Quelé aventurou-se em busca desse tão almejado emprego.
Assim que começou a trabalhar, ele e um amigo que conheceu no novo emprego, apelidado de Xingau, por ter semelhança com japonês, observaram que os colegas de serviço, apesar de não serem homens tão amigáveis, iam embora sem ao menos se despedirem, resolveram construir às escondidas uma pequena jangada, que poderia ser usada em qualquer situação que por ventura surgisse.
Os trabalhadores, sempre vigiados por homens armados, se alojavam em barracões cobertos de palha,  sem parede, se acomodavam em redes entrempadas uma por cima das outras, sem o mínimo de conforto, porém, o incomodo não impedia Seu Quelé pensar em tudo o que via e acontecia ao seu redor: Será que o Coronel  tinha esposa e filhos? Ninguém via. Na certa viviam na condição de escravos, sempre prontos a servir aquele medonho senhor. Achava que eram os próprios capangas que se encarregavam de preparar a bóia e os outros afazeres domésticos na casa do coronel, pois não se via roupas femininas estendidas no varal. Bem, se existia alguma mulher morando ali, o coronel a escondia, afinal, qualquer mulher naqueles confins, poderia virar o juízo dos homens, inclusive o dele. Esses pensamentos e a lembrança da família embalavam muitas vezes seu sono.
 Quanto ao asseio corporal era mais escasso ainda, escovavam os dentes com os próprios dedos utilizando a areia do rio como creme dental, banho tomado apenas no rio,o cardápio se revezava entre farinha de carimã com carne de porco cozida, chibé com peixe assado num velho fogão à lenha e quando faltava a mistura se alimentavam de “farinha morta”, era  a farinha d´água umedecida com água e frita na banha de porco com sal e urucum, servido em velhos pratos esmaltados e nos minúsculos canecos também esmaltados, tomavam café e água retirada da cacimba que eles armazenavam em bilhas.
 Depois de quase dois anos, os dois amigos, alegando saudade da família, pediram as contas, receberam um dinheiro avultado, porém, antes de pegarem o barco que iria conduzi-los às suas casas, o dito coronel, pediu-lhes que fizessem um pequeno favor.  Seu Quelé adiantou-se indo até o alojamento guardar o dinheiro adquirido com seu suor. Acompanhados de dois capangas, um armado de revólver e outro de espingarda cartucheira, caminharam no meio da mata até chegarem em um local descampado, e conforme o pedido do ex-patrão, Seu Quelé e Xingau começaram a cavar uma vala com dois metros de comprimento e três de fundura.
Os capangas se ausentaram depois de avisá-los que iam caçar mutum para o almoço e quando terminassem o serviço era só assobiar. Seu Quelé com sua esperteza amarrou um cipó bem forte em uma árvore que estava próxima da vala, que ele e Xingau subiam para matar a sede, bebendo um leite retirado do cipó murutetê, que servia como água.
Quando terminaram o serviço, saíram da pequena vala pelo cipó e em seguida, assobiaram, não demorando muito, os dois capangas apareceram.
Seu Quelé foi logo dizendo:
_Desça lá, pra ver se está de seu agrado.
O capanga meio desconfiado, olhou para o outro, deixou a espingarda no chão e desceu pelo cipó. O outro, foi logo empurrado por Xingau para dentro da vala. Seu Quelé, com muita agilidade apartou o cipó com a ponta afiada da pá. Enquanto os capangas tentavam inutilmente escalar as paredes da vala, os dois amigos jogavam terra em cima deles, soterrando-os até a altura dos ombros.
 Seu Quelé e Xingau após esconderem as armas no mato, correram de mata a  dentro até o local onde estava escondida a jangada. Seu Quelé, até pensou em buscar o dinheiro recebido, que havia embrulhado em um molambo e guardado embaixo do tambor de farinha, lá no barracão. Desistiu. Assim era arriscar-se demais.
 Após tomarem água do cipó murutetê para recuperarem o fôlego e roerem uns suculentos tucumãs encontrados sob as encharcadas folhas caídas das árvores, subiram na jangada, navegaram à deriva o resto do dia pelo Rio Uxi,
Navegaram muitos dias. Foram obrigados dar voltas enormes, sempre cautelosos para não serem pego pelos capangas sanguinários do coronel.
Numa noite, para que pudessem ser vistos por tripulantes de um navio que passava um pouco longe, Seu Quelé, ateou fogo em sua camisa, esquecendo que estava de posse somente daquela roupa e nem lembrando do frio que poderia enfrentar.
Assim como o vento, a sorte também estava a seu favor. O navio os resgatou, deixando Xingau no Porto de Sarapó e Seu Quelé, já em terra firme partiu para rever a família.
A mulher quase não o reconheceu, por estar barbudo e maltratado, chorou copiosamente, pois tinha  certeza que nunca mais veria seu esposo querido.
Com o passar dos dias, Seu Quelé, parecia outro homem, sem a habitual desconfiança na fisionomia, que houvera adquirida naquele lugar abominável.
Meses depois, recebeu uma carta do conceituado fazendeiro Téofilo Miranda, outrora, fora militar com muitas divisas, que tendo conhecimento da história ouvida pelos tripulantes do navio que havia prestado socorro aos dois amigos, gostaria que ele, Seu Quelé,  o acompanhasse para desmascarar o truculento Coronel Mamédio Bentes, que outrora  havia saqueado suas terras, se apossando da maioria de seus bens e que finalmente descobrira seu paradeiro.
Seu Quelé, lembrou que como se tivesse acontecido ontem, que havia rumores que esse tal de  Teófilo, atualmente era um homem muito rico com bastante prestígio e influência na sociedade, quando não estava elegantemente vestido para as cerimonias sociais, evitava andar de sapatos e paletó, homem de voz rigorosa que naquele dia disfarçou-se de trabalhador braçal e foi arranjar emprego na fazenda do malvado coronel.
 Teófilo partiu de barco para fazenda com uma comitiva de uns vinte  homens armados, com revólveres calibre 38, todos vestindo calça e camisa de algodão, chapéu de palha,  inclusive Seu Quelé, que tornou-se um convidado ilustre para àquela bem planejada expedição.
Ao chegarem na porteira da fazenda,  Téofilo, humildemente pediu ao capanga para falar com o Coronel Mamédio, adiantando-o que precisavam trabalhar por terem família e filhos para sustentar. E logo que foram levados à presença do coronel para convencê-lo, Teófilo falou:
_Um homem sem trabalho é um homem desonrado.
O Coronel Mamédio era um homem de cerca de cinquenta anos, média estatura, pele tostada pelo o sol nortista, nariz adunco, olhos miúdos, barba cerrada e bigode grosso davam-lhe a fisionomia de um ser extremamente severo. Embora falasse corretamente,  todas as palavras proferidas soavam como uma ordem, talvez pela força do hábito de mandar.
Depois de serem aceitos pelo severo patrão, Teófilo vendo numeroso armamento na parede e outra grande quantidade de cinto de couro cru, pendurados nos armadores de rede, aguçando sua curiosidade quis logo saber:
_Pra que tanta  armas e cintos?
O Coronel Mamédio respondeu com frieza e arrogância:
_Serve para matar ou açoitar caboco que não quiser trabalhar!
 Teófilo, homem que não admitia injustiça e nem bandidagem, talvez por ter sentido na pele, o que essas duas palavras representam, não se conteve, partiu para cima do famigerado coronel, agarrando-o pelo colarinho da alva camisa de casimira, avisando com sua voz firme:
_Repita o que disse, seu bandido!
O Coronel Mamédio ainda tentou levantar a mão para ordenar seus capangas, porém foi impedido pelos os homens que acompanhavam Teófilo que já estavam com revólveres em punho.
_Você sabe com quem está falando? Sou Teófilo Miranda o fazendeiro mais rico dessa região. Consegui me erguer, está vendo, seu maldito?
E apontando para os homens, comunicou:
_Amordacem esse salafrário!
Os olhos do Coronel Mamédio chispavam, lábios cerrados e respiração ofegante, parecia um touro brabo, tornando seu rosto ainda mais carrancudo, sempre demostrando superioridade, talvez sua ira fosse  em consequência em ter  sido capturado com tanta facilidade.
Depois de render todo o bando, Teófilo começou a averiguação:
_Onde estão os restos mortais dos homens que nunca conseguiram voltar para suas casas?
Teófilo e seus homens, caminharam para um local indicado por um dos capangas detidos. Era um lugar de difícil acesso, descampado, no meio da mata, tropeçaram com muitos ossos humanos espalhados pelo chão. Aproximadamente trezentos crânios foram desenterrados.
Depois de confirmada a atrocidade realizada pelo desalmado coronel,  Téofilo, exigiu que fosse apresentado o dinheiro adquirido com o suor dos trabalhadores, a maioria já mortos, que com certeza nunca foram pagos.
Os capangas do coronel, sob a mira dos revólveres, trouxeram sacos e mais sacos abarrotados de dinheiro em cédulas de mil réis, Com o dinheiro recuperado, Teófilo, efetuou o pagamento de trabalhadores que estavam escravizados. Havia trabalhador com mais de vinte anos que vivia na fazenda  Alguns estavam tão cansados, tinham os olhares sombrios e tristes, pareciam resignados à sorte que lhes coubera, de ficarem trancafiados naquele fim de mundo.
Através de um velho caderno com anotações, encontrado na casa do algoz coronel no qual constava dados importantes como, o nome ou apelido, início da estadia dos trabalhadores, foi possível identificar as pessoas que foram massacradas e encontrar seus familiares, para dar-lhes o devido pagamento.
O fazendeiro Teófilo, com ajuda da justiça recuperou a  maioria de seus bens.
Quanto o fim do perverso coronel?
Seu Quelé não sabe o certo. Ouviu muitos boatos contraditórios que circulavam na época, uns dizem que ele foi acorrentado para um presídio localizado numa Ilha distante, que não era de  segurança máxima, porém, nunca, nenhum preso conseguiu fugir, pois teria que atravessar a nado, quilômetros de mar. Outros afirmavam que como Teófilo, por  ser muito poderoso, pagou e bem pago, para que colocassem braçadeiras  nos braços e nas pernas do tal coronel e o jogasse no mar. Nunca mais teve notícia sobre seu  real destino.
E seu Quelé?
Passa as manhãs nubladas ou ensolaradas caminhando na beira da praia, ora olhando o mar, ora conversando com velhos amigos ou turistas iguais a mim, que procura um lugar sossegado para escrever.
Seu Quelé contou esse episódio com tanta veracidade e empolgação na voz, que até os galhos e as raízes submersas do mangue pareciam curvar-se cada vez mais para ouvi-lo melhor.
Seu Quelé. Vive no anonimato, mas com certeza é um grande homem, vaidosíssimo, por ter contribuído, juntamente com Téofilo Miranda, combater a escravidão humana, essa vergonha que até hoje existe por esse mundo afora.


 
 
Conto publicado no livro "Contos Selecionados de Grandes Autores Brasileiros" - Maio de 2016