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Paula Perin dos Santos
Juazeiro do Norte / CE

Valsa de despedida

 

1972. A valsa de Francisco e Dalva no rádio preenchia o repentino silêncio que se fez no quarto de minha mãe. A mãozinha quente de Luizinho pousava sobre o meu peito. O choro cessara. Os olhos azuis me fitavam com aquele olhar doce e meigo de bebê, que me dizia em silêncio: “... Ninguém pode afastar o meu coração do teu... No céu, na terra, onde for... Viverá o nosso amor”.
Luizinho nascera gordinho e corado. Tão diferente dos outros sete que mamãe teve no sertão... Tratei dele como se fosse meu próprio. Mamãe vivia tendo menino. Todo ano ela paria, mas o rebento não vingava. Eu tinha muita raiva de mamãe, me tratando como se eu fosse criança. Com o bucho pela boca, ficava inventando histórias para tentar me engabelar, como se eu não soubesse como se fazia menino. Daí quando chegava as parteiras do sítio Arão, ela dava um jeito de mandar a gente pra casa de Madinha. Eu ia mais Gá, a muito contragosto. Quando a gente voltava, lá estava ela com um menino nos braços. E inventava que Dona Lilô tinha mandado trazer da capital, ou que tinha vindo no avião. Como se a gente fosse aquele povo que acredita em tudo quanto é superstição.
Fazia raiva ver mamãe com menino no braço. Pois eu já não era moça? Bonito mamãe tendo filha moça ficar todo ano tendo menino! Foi muito tempo só eu e Gá, pois todo neném que nascia não vingava. Choravam aquele choro fino e penoso de penetrar os ouvidos e se encravar no peito. Por dias e noites intermináveis. Quando perdiam as forças, o choro ardido dava lugar a um fungado mudo e contínuo. Depois sucumbiam, e o silêncio reinaria não fosse pelo lamentar desconsolado de minha mãe.
As coisas ficaram difíceis no sítio, e não melhoraram quando nos mudamos pra cidade. Foi então que papai decidiu vender tudo para tentar a vida em São Paulo. Vovô morava em Cubatão, então fomos pra lá. Antes de entrar no pau de arara, eu inda olhei para trás e jurei para Nosso Senhor que eu ia me casar com um paulista, pra nunca mais ter de pisar nesse lugar. Não demorou muito e mamãe engravidou de novo. Dos doze filhos que tivera, já tinha vingado cinco, eu mais Gá, Antonia e Quel, mais Joãozinho, que quase morre se não fosse a mão de Nosso Senhor. Pois pra quê ela tinha de inventar de ter menino, se Joãozinho ainda nem tinha largado as fraldas?
Mesmo emburrada com mamãe, ajudei a bordar as fraldas, coser os pagões, fazer crochê nos cueirinhos estampados de ovelhas brancas. Luizinho nasceu tão corado, o corpo cheio de dobrinhas de tão gordinho. Aqueles os olhos azuis, tão vivos e penetrantes como os da águia, nos fitava como se nos lesse a alma. Esqueci a birra e o passado sofrido, diante da felicidade de ter aquele encanto como irmão.
A mãozinha ainda quente de Luizinho pousa sobre o meu peito. Não há mais soluço, nem choro de dor. Os olhos azuis penetrantes ainda me dizem: “Adeus amor, eu vou partir, ouço ao longe um clarim”. Os lábios rosados mais parecem um botão de rosa recém-abrochados, soltando balbucios que se perdem no ar, acompanhando a canção: “Mas onde eu for irei sentir... Os teus passos junto a mim”. Pego seus dedinhos e sinto que pressionam levemente os meus. E assim, ao som da canção no rádio, os olhos de Luizinho se encerram para sempre.

 

 
 
Conto publicado no livro "Contos Selecionados de Grandes Autores Brasileiros" - Maio de 2016